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SONS QUE PASSAM
SONS QUE PASSAM
DE
THOMAZ RIBEIRO
Segunda edição corrigida
PORTO
LIVRARIA MORE
PRAÇA DE D. PEDRO
4873
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4Í)3S5tí
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PORTO.' TYP. DB MÁNOKL JOSÉ PEREIRA,
Bua de Santa Thereza, 4 e 6
O' doloridos sons da minha ljra,
vibrael passas) ,
Sois o triste sorrir de quem suspirai
o fugaz suspirar de quem delira!
de vós o mais alegre é quasi um aiL
O' doloridos sons passae! passae!
Quem habitualmente vive nos campos conhece e apre-
cia os — sons QUE passam — vozes que se cruzam nos
«rés, que se repercutem nos ecos, e vão perder-se na
distancia; sons que se vão acordando e crescendo á pro-
porção que diminue o côro-burburinho da humanidade;
harmonias que não cabem na arte e se perdem na natu-
reza; cantos que só têem affinação no theatro modelado
pela acústica do infinito. E a catadupa do rio, na sua
<juéda monótona e plangente; é a flauta do pastor entre
os balidos do armento; é a cantiga do barqueiro levado
a sabor da corrente sobre a tremula esteira do luar; é
st canção de gloria que o soldado e a vivandeira vão
cantando na estrada; é o prolongado coro dos campo-
nezes que voltam do trabalho; è os fragmentos de riso»
e harmonias festivas que fogem do palácio iHuminado;
é a conversa das aves nos choupaes; o lamento das sau-
dades; o murmúrio da prece... e todo este concerto vago,
incompleto, indefinível mas saudoso e atrahente, a ba-
loiçar-se nas mórbidas lufadas da aragem, perfumado»
coxins, em que passam as harmonias da natureza.
Sons que passam também são os cantos efémeros do
poeta; monólogos da sua fantasia que são ordinariamente
diálogos com o seu coração, e que se 'noutro coração
acharam eco, expiram coroados pela máxima gloria a.
que podiam aspirar.
Parada de Gonta, 30 d' Agosto de 1867.
êlmm lilm
í
E
São passados perto de cinco annos desde que se pu-
blicaram estes versos que em boa consciência denomi-
nei — Sons que passam. Leio-os agora que se lhes pre-
para segunda edição e admiro-me de que viram ainda;
tão singelinhos são pela maior parte. Comtudo foi-me
aprazível a sua leitura. Voltei por momentos ao meu
passado e senti verdadeiras saudades ao ler algumas
d'essas mais singelas composições que ha muito nem re-
cordava.
Entre os reparos que fiz avulta o do espirito reli-
gioso que preside a grande parte d'esses cantos. Nisso
parece este livro datar de cinco séculos em vez de cinoo
3nnos; que certas ideias e certas crenças envelhecem
agora à toute la vitesse, como diria um engenheiro fran-
cez.
Pois a questão religiosa prendeu fatalmente todas as
questões sociaes que agitam a humanidade. O mundo
tem perdido as suas crenças piedosas; não se illudam
os povos nem os governos. Gs povos catholicos, princi-
palmente, vão caindo, uns numa indifferença, outros
numa reacção temerosa. Quem menos sabe isto é o Papa,
justamente por ser o primeiro que o devia saber. E
lucte embora quem luctar para retemperar e robustecer
a fé; o seu trabalho será estéril. A fé é como a virgin-
dade, uma vez perdida não se rime.
Pois se ha espectáculo que contriste, preoccupe e
atterfe é ver a humanidade a despenhar-se por abysmos
infinitos, á luz crepuscular d'uma filosofia sceptica e
.esterilisadora e contorcendo-se e blasphemando como os
anjos caídos de Milton.
A razão! só a razão! que é fraca e fria e pouco al-
lumiada! e o sentimento annullado e a aspiração, as
ambições, as saudades indefiníveis, a admiração das ma-
ravilhas sem conto, as melancolias que prendem longe,
em paizes ignotos e luminosos, e o espectáculo da mor-
te do crente, que parte a sorrir, entre-vendo o ceo, que
diz aos seus filhos, a seu pai, aos seus amigos — até
breve — emquanto o descrente nem sequer tem por ora
XI
uma palavra com que se despeça, porque— adeus — não
pode elle proferir! tudo isto nada! nada!! Ver que a philo-
sophia com o seu rir de satanaz quebra todos estes elemen-
tos de reparo e passa com os seus sapatos de ferro por
sobre os mortificados corações da humanidade, eis o que
faz retrair o poeta como se retrae a sensitiva ao sus-
peito contacto do viajante.
E' d ? aqui principalmente, que nasce o mal-estar da
humanidade; d'aqui as revoltas quotidianas, as ameaças
constantes á vida, á propriedade, ás instituições; d'aqui
o entre-verem os mais aprehensivos, pelas fendas que
vai abrindo e alargando o terremoto politico, a tene-
brosa superfície do cahos.
O — mal-estar — não é tanto politico como é moral.
Faltando ao individuo um Deus em que se ampare, a.
quem confie as suas magoas, de quem espere, e até
contra quem blaspheme nas horas do seu deli rio, fal-
tando-lhe a eternidade, complemento da vida e realisa-
<jão d'aspirações, olha-se, acha- se misérrimo, só, ephe-
mero. Entristece-se, desvaira e procura em quem se
vingue da esterilisação da sua alma, da annullação dos
seus sentimentos. Na cegueira da sua injustiça feroz
vê diante de si o que mais avulta: os poderes públi-
cos; espuma, troveja, contorce-se e cáe sobre elles que
só desejam fazer-lhe bem. Assim o doente se revolta
xn
contra o enfermeira nas anciãs do sen padecimento; as*
sim cada um de nós tem dito uma má palavra ou feito
um arremeço á pessoa que se desvela por nos ser agra-
dável, ao cão que nos lambe os pés; e temos até cevado
o nosso mau humor no objecto insensível que mais nos
fica á mão*
Oh! e como é desculpável este supremo desgosto,
sendo a vida um inferno que só se acaba na morte! Sa-
ber-se que se morre e morrer-se na convicção de que
tudo acaba ali!...
Chegando a esta miséria, a humanidade tem direito
de crear um creador para blasfemar contra elle.
A culpa... é preciso dizer tudo a todos sem medo de
impopularidade8; remédio, é o amargo da verdade; ve-
neno, o mel da lisonjaria; a culpa deste estado deve-se
principalmente ás imprevidençias dos infalliveis, que
improvisam ceremonias e complicam ritos quando é pre-
ciso simplificar o culto; que arvoram dogmas em barri-
cadas e carregam obuzes com bulias, quando é preciso que
a divina verdade se humanise e que ò sacrário não
cheire á pólvora das vinganças, mas sim á pureza das
hóstias.
Desde que as religiões se transformam em seitas po-
liticas descem a uma arena onde nem sequer podem ob-
ter as honras de belligerantes; os seus adversários poli-
XIII
ticos tratam com incontestável direito de minar pelo*
alicerces a instituição adverea e chega-se á negação da
Deus por um caminho tristemente lógico.
Primeiro espanta-se o próprio argumentador da sua
conclusão, depois acalenta-a ao calor do seu orgulho e
acaba por convertel-a em convicção. Tornada seita, pro-
clamada eschola, o que primeiro se mostrara utopia,
labora, cresce, lavra, lavra, insinua-se e domina.
O resultado é este: a melancolia do desespero, a
propagação de todas as doutrinas dissolventes, cujos
apóstolos já vistos k luz sinistra dos espingardeamentos
e incêndios de Paris e d , Álcoy > faliam em liberdade
pela mesma razão porque os neos dos tratos, das foguei-
ras inquisitoríaes e das forcas faliam em Deus: — por
conveniência.
Não se lucta para edificar, lucta-se para destruir,
lucta-se para morrer. Vesti-vos d'amarello, batalhadores
sem esperança! como os regipús e os marathas, ao fir-
marem o pacto da morte, com as mãos no sangue das
suas mulheres, das suas creanças e dos seus velhos.
Não sei para onde vamos e ninguém o sabe. Os ul-
tramontanos acenderam Deus tanto e tanto que nos iam
cegando; que fizeram os cismontanos? — apagaram-no.
Os philosophos, alchimistas de nova espécie, metem
nas suas retortas todos os acontecimentos deploráveis e
XIV
fazem o ouro das venturas. A sociedade lá ganhou saúde
immensa com a sangria que soíFreu na queda.
Será verdade? Mas passaram séculos nas trevas e as
Sociedades tiveram de começar de novo; e as injustiças
nunca se repararam, e os crimes nunca se castigaram,
e o que se perdeu não se achou.
Mentis, philosophos da historia, e damnaes a socie-
dade com as vossas absolvições e sanctifícações.
A propósito de versos religiosos fallei de politica.
E' que a politica absorve tudo e corre-nos obrigação de
não fugir d'ella, visto que nella e só nella se empenha
a grande lucta.
Deixemos lá correr os pobres versos que sendo d'um
liberal e d'um progressista que tem a convicção does-
tar com os mais adiantados, ainda faliam em Deus!
Isto em
Agosto de 1873.
COROA DESPIMOS
lias horas do silencio, á meia noite,
eu louvarei o Eterno.
Ciçam-me a terra e os mares rugidores,
e os abysmos do inferno.
A. Herculano.
DEO GLORIA!
A Ti, que és grande e bom; a Ti, que entre caricias
deixaste que eu crescesse ao pé de minha mãe:
a Ti, que a tens no ceo gozando o summo bem,
do meu trabalho, ó Deus, venho pagar primícias.
PENA E PERDÃO
i
Houve tempos de vida, paz e gloria,
sem mortíferas lanças conquistada;
não conheciam sangue annaes da historia,
nem fojo o tigre, nem serpente a estrada,
nem hymnos fratricidas a victoria,
nem a guerra trofeos de cinza e nada:
era tudo ventura, amor, e riso;
e havia por morada um paraíso!
Mas quando o homem vive e goza um dia
sem poder desejar maior ventura,
pede ao seio um desejo! tal, sem guia,
quiz-se o feliz perder, ó desventura!
quiz um éden melhor, outra harmonia;
quiz mais alto voar... caiu da altura!
Perdeu graça, riqueza, paz, e amores;
restou-lhe a vida, e n'ella amargas dores!
Bom e opulento, um'hora de vaidade
reo e pobre o levou ante o seu Deus!
A vez primeira supplicou— piedade! —
tremeu, corou, curvou-se aos olhos seus!
Juiz e pae mostrou-se a Divindade:
— «Em castigo, proscripto és já dos ceos;
por esmola conquista o antigo brilho;
trabalha, e viverás, meu pobre filho!» —
Assim, ao filho desleal, perdido,
um pae, um Deus, por castigar, beijou;
e d'orvalho subtil todo incendido
o rosto criminoso se inundou.
O sceptro d'immortal caiu partido;
e o alvião servil quando empunhou,
pela terra infecunda, nua, fria,
cavou o negro pão de cada dia!...
II
E o homem vivei sobre o chão curvado
colhe o legado que o Senhor lhe deu!
mas ai!... perdido, pela senda errada
não acha estrada que o conduza ao ceo.
Ai do viandante que não vê caminho!
ai do mesquinho sem a luz da fé!
ai! que, na falta d'um amor sublime,
triunfa o crime, do ludibrio ao pé!
Deus a esse povo que foi grande e forte
quiz dar a morte, e retirou-lhe a mão:
um mar sem praias abysmou-lhe a ossada,
e a morte e o nada campeou então!
E d'esses nomes, e d'aquellas plagas,
que o mar em vagas consumiu, sorveu,
nem uma lettra de banal prestigio!
nem um vestígio do que ali morreu!
Não! Deus não quiz áquella raça inglória
nem a memoria do epitaphio dar:
cavou-lhe a campa; jaz... se não repousa;
deu-lhe por lousa movediça — o mar!
8
Dos cavos antros do sanhudo abysmo
que o cataclismo revolveu e abriu,
Jehovah, da altura do seu throno augusto,
somente um justo resgatou, remiu!
Qual primavera que, dos ceos suspensa,
vê campa immensa de jaspeado alvor,
bqfeja as dobras do funéreo sello,
estala o gelo, reapparece a flor,
Deus manda! e, base d'edificio novo,
valente um povo appareceu, brotou,
levando a vida ás escarpadas plagas
que o mar em vagas em soidões tornou!
De novo o homem, sobre o chão curvado,
colhe o legado que o senhor lhe deu;
e, desgarrado, pela senda errada
não acha estrada que o conduza ao ceo!...
III
Mas eis que chega a hora
do assignalado termo!
Nas trevas e no ermo
sorri a flor e a aurora!
9
Ignotas harmonias,
tremores jubilosos,
\ersos mysteriosos
Da harpa das profecias,
presagios de venturas
á triste humanidade
na serra e na cidade,
no abysmo e nas alturas,
dizem que é vindo o Eterno,
reparador d'estragosí
dizem-n-o a estrella e os Magos,
e o rebramar do inferno!
Depois, o eco se calou dos júbilos,
6 o cântico de Hosanna emmudeceut
após a lida, á hora do crepúsculo,
o Semeador divino adormeceu!...
Uma cruz solitária sobre o Golgotba
ao mundo conta onde morreu Jesus;
e fulgente, vivaz, divina auréola
Ha m me j a eternamente sobre a cruz!
E exulta o homem! sobre o chão curvado
colhe o legado que o Senhor lhe deu;
e a cruz de Christo, no Calvário erguida,
mostra a avenida que o conduz ao ceot..«
/
10
IV
Como é bella a natureza!
o orvalho accende a deveza,
do sol ao vivo clarão;
myrtos, cardumes de rosas,
purpúreas, frescas, viçosas,
vestem as rugas do chão;
tendo a prumo o sol adusto,
lida o paizano robusto
colhendo a vida e o perdãof
Das aves casando ao canto
orações, e riso, e pranto,
chora e canta o camponez,
nas lutas d'uma anciedade
d'indefinida saudade...
do paraíso, talvez!...
São carmes d'um resignado.,
saudades d'um desterrado!
Vinde escutal-o outra vez:
ii
— «Senhor, se n'este caminho,
que do nada ao ceo conduz,
dispensas tanto carinho,
tanto aroma, tanta luz,
o castigo do meu erro
não foi de juiz, não é!
que eu acho n'este desterro
caridade, esprança, e fé!
Como a planta ao chão se aferra»
tal um poder infinito
nos prende e encadeia á terra
como um grilhão de precito!
Mas se a planta aos ceos envia
perfumes do seu abril,
e se o pó da flor d'um dia
vôa aos paços d'anil,
nós temos o amor bemditof
e, quando se acaba a dor,
noss'alma sobe ao infinito...
mais alto que o pó da flor!
12
Meus filhos, por minha morte,
sem o paterno carinho,
ficais no mundo sem norte,
quasi sem pátria e sem ninho!
Ai, meus filhos, meus encantos!
muito custa ao coração
quebrar os laços mais santos
que no desterro nos dão!...
Só vos deixo dois legados
bem santos, que vem de Deus:
Paciência, desterrados!
Resignação, filhos meus!
Sabeis qual seja a ventura
do homem que padece tanto?
— Um sorriso sem loucura
d'uma tristeza sem pranto!» —
VI
Tal canta o pobre! e, sobre o chão curvado,
colhe o legado que o Senhor lhe deu;
e a cruz adora sobranceira erguida
como a avenida que o conduz ao ceo!
Março de 1854.
CONSUMMATUM EST!
Filhos de Christo, consummou-se agora
o horrendo crime d'Israel, na cruz,
Trémula se abre a terra! o sol descora!
a Igreja chora, que morreu Jesus!
Levanta o soterrado a lousa dura!
do Templo augusto se espedaça o veo!
noite completa negrejou na altura!
densa negrura nos esconde o ceo!
14
Cumpriram-se as profecias!
Entre affrontas e agonias
troa da morte o pregão!
Compungida a natureza
veste os crepes da tristeza!
pára d'assombro o Jordão!
Rei, pobre, escravo, pranteia!
lava-te em prantos, Judeia!
chora, perdida Sião!
Quem deu luz a vossos olhos
por que vísseis os escolhos
da vida, olhae... já não vêí...
Quem deu agua á rocha dura,
sustento á raça perjura,
que sempre, sempre descrê,
morreu no Calvário exangue,
para vos lavar com sangue
as nódoas da vossa fé!
Nem o canto dlsaias,
nem a dor de Jeremias,
te lembrou, Jerusalém!
nem foste pedir conselho
ás aguas do Mar-Vermelho,
nem ás ruas de Salem,
nem ás torpes Madianitas,
nem aos falsos Gabaonitas,
nem ao sangue de Sichemt
15
Não te serviram de guia
as pedras da Samaria,
o castigo de Core,
a Arca santa da alliança,
a soberana pujança
do braço de Josué,
nem Dalila, a má serpente,
nem a serena corrente
da fonte de Bersabél
Pois de Saul a inclemência,
de David a penitencia,
de Salomão o saber,
d'Absalão as concubinas,
do Templo as vastas ruinas,
os magos olhos d'Esther,
não te arrancaram a venda
da tua cegueira horrenda?
não te fizeram tremer?!...
Tantos annos de tormentos,
tantos fieis monumentos
na terra como nos ceos,
não dizem que o Nazareno,
tão forte, e sábio, e sereno,
era o Messias dos teus?
Pergunta ao fiel Caleb,
pergunta á sarça do Horeb,
pergunta se elle era um Deus!
16
D'Isaac pergunta á esposa,
pergunta a Lia chorosa,
pergunta á casta Rachel;
pergunta á formosa Dina,
ante a qual um rei se inclinai
ouve as filhas de Raguel,
ouve Débora aguerrida!
pergunta ao prego homicida
da forte, heróica Jahel!
De Moysés pergunta á vara,
pergunta ás penas de Sara,
e aos mil desprezos d'Agar!
vae de Geth ás sepulturas,
vae do Thabor ás alturas,
vae a Tharé perguntar!
vê Chanaan, vê o Egypto!
e has de achar seu nome escripto
no ceo, na terra, e no mar!
Que breve são esquecidos
os Lázaros resurgidos
da ingrata Jerusalém!
allivios de tantas penas!
vosso amor, ó Magdalenasf
os pastores de Bethlemí
e essa estrella peregrina
que o berço de Deus ensina
aos Magos que adorar vem!
17
Ail tu perdeste a memoria
das profecias, da historia,
madrasta sem coração!
mas, de sangue salpicados,
serão teus áridos prados
espelho de maldição!
teus montes não terão selvas;
teus plainos,— flores, nem relvas,
lethal, estéril Sião!
Como d'arbustos damninhos,
colherás somente espinhos
das rosas de Jerichóí
verão séculos inteiros
em toda a terra estrangeiros
os maus filhos de Jacob!
embora ao ceo, que te esmaga,
peça perdão cada chaga
do manso, divino Job!
Ai de ti! que penitencia
poderá ganhar clemência
para o teu povo, Israel?
Idolatra, má, perjura—
desde Putiphar, a impura,
desde a corrupta Babel!
Altiva, ingrata, descrente—
desde o Horeb e a sarça ardente,
de sempre a sempre, cruel!
18
Um sepulchro dilatado
nas ondas do mar anciado
abysma o Egypto oppressor!
De Hemor culpada a cidade
paga em sangue a castidade
d'uma virgem do Senhor!
Nas faldas do monte santo
custa um crime longo pranto,
muito sangue, e muita dorl
Pelo ultrage dos Levitas,
o crime dos Benjamitas
faz o espanto de Judá!
De Babylonia a torpeza
cresce e reina em torno á meza...
junto á meza a morte está!
Tu... mais que todas perdida,
a tua sorte, deicida,
que sorte horrenda será?!...
Perdoa, Christo, se uma dôr mundana
vem fallar de castigos n'este dial
Tu bebeste por toda a humanidade
o cálix da agonia!
19
No tristonho Jardim das oliveiras
(tu só velavas, tudo o mais dormiaf)
eu vi-te aproximar dos lábios trémulos
o cálix da agonia!
O amargoso do fel te lacerava
fibra por fibra! a dor te consumia!
6 lavaste com prantos mais amargos
o cálix da agonia!
Pois quem se vinga? o homem! Deus... perdoa.
Só a vontade humana se entibia
da morte nos umbraes; só Deus acceita
o cálix da agonia!
Nós somos d'Israel filhos impuros,
cegos á luz do sol em pleno dia!
Tarde a venda caiu, mais tarde o pranto
pela tua agonia!
Senhor! tu que lançaste olhos bondosos
ao discípulo vil que te vendia,
oh! salva os desterrados filhos d'Eva
pela tua agonia!
20
Na eminência do Calvário
morreu de Deus o cordeirof
e o soluço derradeiro
foi o perdão de Jesusl
Treme em seus eixos a terra,
que nos parece tamanha
e é fraquíssima peanha
para suster uma cruz!
Duma dor sem semelhante
a triste Mãe traspassada,
cai na terra ensanguentada,
e ao pé da cruz se abraçoul
Nos olhos tem tal angustia,
nos lábios tanta meiguice,
que o anjo puro que disse
— Ave Maria — chorouf
Tudo está concluído,
segundo vós, profetas de Sião!
O Verbo eil-o cumprido: —
os prodígios! o crime!... a redempção!
Parada de Gonta, 1859.
STABAT MATER
Brancas ossadas, sangue, e rochas duras,
onde nem cresce o musgo das ruinas,
nem passa a viração!
onde não contam aves peregrinas
seus segredos d'amores e ternuras
aos ecos da soidãot
cerro de maldição, furnas perdidas,
onde abutres, só, vem á meia noite
ao pútrido festiml
throno para quem foi do mundo açoite!
pedestal para estatuas de homicidas,
de Nero, de Caim!
22
mal hajas, ó Calvário!— D'essa agrura
nas erriçadas pedras ha momentos
se arrastava uma cruzl
levava-a um semi-morto a passos lentos;
e, após os mil horrores da amargura,
nella morreu Jesus!
Emquanto lá por baixo em festins ledos
no tripudio febril de cem orgias
folga Jerusalém,
os restos sacrosantos do Messias,
sentinella perdida entre rochedos,
guarda a chorosa Mãe!
Fugi de junto d'ella, almas descrentes!
não maculeis a dor da Virgem bellaí
Não tendes dó? passaeí
Mães desgraçadas, pranteae com ella!
Órfãos, pobres, meninos innocentes,
é vossa Mãe! chorae!
Guarda no seio o cofre dos amores;
por c'rôa tem o iris da bonança;
nos lábios, o perdão!
Ai! quem recolhe a pomba da alliança,
que anda cançada sobre um mar de dores
pedindo um coração?!
23
Ningem? ninguém, Virgem pura,
estrelía cTalva chorosa,
pomba de meiga candura,
rainha cTanjos mimosal
Ningueml Na soidão cruel
em que ficaste, mesquinha,
emquanto choras sósinha,
folga a deicida Israel!
Hoje... hoje, tumulto e festa
n'essa cidade maldita!
amanhã, viuvez funesta
na Babylonia incontrita!
que nas bodas de Cana,
onde houve tanta alegria,
já falta a Virgem Maria,
já falta o Deus de Judá!
Se na amargura d'est'hora
não achas um peito amigo,
dá-me os meus prantos, Senhora,
que eu quero chorar comtigo.
Da ingrata Jerusalém
sou reo de morte, é verdade;
mas, Virgem da soledade,
eu sou teu filho também!
24
Ao ver-te a face anuviada
•
de tantas, de tantas dores,
ante a forma regelada
do teu filho, teus amores,
co'as azas brancas da fé
percorri mundos inteiros!
trago-le muitos romeiros,
ó Virgem de Nazarethl
Cheguei-me á porta dos vivos
dos encantos que os algemam
os ricos vivem captivos,
os desgraçados blasphemam!
Fui-me os mortos evocar;
e os sepulcros, condoídos
d'escutar os teus gemidos,
se abriram de par em par!
Aqui tens santas imagens
da dor e do desconforto;
naufragaram nas paragens
do oceano que não tem porto!
Se é maior tua afflicção,
se não padeceram tanto,
ai! desfez-se-lhes em pranto
a seiva do coração!
25
Aqui tens Eva, a coitada!
tio bella, e tão desditosa!
tão amante, e tão amada!
tão pobre, e tão criminosa!
No seu martyrio cruel
chora em profunda amargura
do seu peccado a negrura,
saudades do seu Abel!
Vem, A gari escrava... embora!
mãe que padeceste horrores!
neste logar e nesfhora
não ha servos, nem senhores!
Nos ermos de Bersabé
fugiu-te a luz dos teus olhos!
tinhas um cento d'abrolhos
nas chagas de cada pé!
Em vão buscavas torrentes
na aridez d'aquelle monte...
em vão! teus prantos ardentes
tinhas por única fonte!
mas o teu caro Ismael
achou cristallinas aguas;
e o Martyr de tantas maguas
teve uma esponja... de fel!
26
Velho das barbas de neve,
Abrahâo, lembras-te, valente,
de quem te o golpe deteve
sobre o teu filho innocente?
Ahi tens a Mâe de Jesus,
sem ventura e sem fastígio!
Quem obrou tanto prodígio
foi seu filho).. . olha essa cruzf
Quasi do sepulcro ás bordas,
teus prantos, tua agonia,
Jacob, se ainda os recordas,
pranteia a dor de Maria!
Deus, que ao teu casto José
cobriu de palmas no Egypto,
morreu corrido e proscripto
entre e seu povo sem fé!
Triste hebréa, obscura e pobre*
sobe a encosta do Calvário!
tens um logar muito nobre
neste adjunto funerário!
a Virgem sabe quem és,
conhece o triste sigillo
de quando entregaste ao Nila
o berço do teu Moysés!
27
Jephte, que em troca da gloria
a casta filha condemnas,
nunca se comprou victoria
á custa de tantas penas!
Na manhã do seu abril
(má jura que tu juraste!)
infeliz pae, que ceifaste
de Maspha a rosa gentil!
— «Quem és tu, vulto gigante,
de rei e fronte c'roada,
na dextra espada brilhante,
e na sestra harpa doirada?!»
— «Eu sou J)avid, o cantor,
o monarchá penitente,
rei, opulento, indigente,
a gloria, o remorso, a dor!
Dâ negra sorte aos rigores
nunca ninguém chorou tanto!
Senhora Virgem das dores,
venho offertar-te o meu pranto!
A alva, o occaso, o norte, e o sul,
o rio, o valle, a montanha,
me viram curvado á sanha
feroz do ingrato Saul.
28
A dor que o peito consome
ninguém calcula, nem mede:
chorei de frio, e de fome,
e de cansaço, e de sede;
e sempre em cada manha
eu pedia a Deus o esquife,
ou nos (Jesertos de Ziphe,
ou nas covas d'OdolIam.
D'Urias pranteei a sorte;
d'Isboseth... tarde, bem tarde,
chorei a aleivosa morte!...
forte, o amor fez-me covarde!
Por mim, por Bethesabé,
nosso amor, nossas maldades,
carpi! chorei de saudades
nos montes de Gelboé!
Fui pae,.comprehendo os teus prantos;
perdi meu filho, Senhora!
do amor paterno os encantos
vê se os eu choro inda agora!
Minhas cans, meu coração,
cobriu de vergonha infinda;
mas eu morreria ainda
pelo meu filho Absalão!» —
29
Vem também, Respha piedosa,
que os filhos que conceberas
por seis mezes lagrimosa
furtas aos corvos e ás feras!
Venham as mães (Tlsrael,
as viuvas da Judeia,
de Sarephta, a Chananêa,
a Sunamitis, Rachel)
Á Virgem prestae confortos;
na sua dor confundi-vos!
haja um cortejo de mortos
para vergonha dos vivos!
Lá em baixo, n'esse festim
de tão sinistro ruido,
ha de estar Jairo esquecido,
e a viuva de Naim.
Lá em baixo, risos e cantos
por entre os fumos da orgia;
aqui... soluços e prantos
nas convulsões da agonia!...
Do mundo não vem ninguém
ás solidões do Calvário!
Chorae, sombras, no sacrário
do seio da virgem Mãe!...
30
Virgem das Dores, na soidão chorosa!
pomba formosa, inconsolável, sói
só, n'esta magua, e soluçando tanto!
só com teu pranto... e sem ninguém ter dót
Se, reo de morte d'Israel perdida,
arrasto a vida encarcerado aqui,
lá nos teus reinos d'uma eterna aurora
lembra, Senhora, que chorei por ti!
Parada de Gonta, 2 cVabril de 1860.
JESUS
Jesus antera, emissa você magna, expiravit.
Se as flores do pomar vestissem luto,
e se as aves do ceo vertessem prantos,
cultos houvera Deus puros e santos,
neste dia solemne, ao pé da cruz;
o coração de pedra, o rosto enxuto,
o rir do scepticismo, a voz blasphema,
não viera insultar o santo emblema
regado pelo sangue de Jesus.
32
Um dia houve, um dia só... sangrento!
Quando a Hóstia d'amor perdeu a vida,
teve a solemne marcha interrompida,
num momento d'horror, a criação!
o sol cobriu seu rosto macilentol
deu toda em coro a natureza um grito!
atraz um passo recuou o infinito
ao ver o crime da infiel Sião!
Hoje, este riso que nos veste o rosto,
hoje, este bronze que nos toma o seio,
esta indiffrença que do inferno veiu
seccar os prantos, insultar o amor;
todo este mundo por tuas mãos composto:
a ave, o prado que floresce e exulta,
a fera, o homem, — não verá que insulta
um pae que morre, em sua extrema dor?!
Jesus, descerra os teus olhos!
vê, vê teus filhos sem norte!
Por essa c'rôa d'abrolhos
enlaçada em teus cabellos,
quebra as algemas da morte!
descerra os teus olhos bellos!
33
Ó sentinella perdida!
da atalaya do teu lenho
vigia a grey pervertida!
olha este cahos sem luz,
chama o disperso rebanho,
abre os teus olhos, Jesus!
Olha esta Babilónia, em tantas linguas
dispersa, confundida!
pedindo pão, e semeando abrolhos,
pedindo leis, e barateando a vida,
pedindo paz, e incendiando a guerra,
e tentando prender nas mãos de lodo
o mar, os ceos, e a terra!
Olha esta nova Judeia,
onde é Calvário a Tarpeia,
e Roma, Jerusalém;
onde o teu Pio Vigário,
expulso do santuário,
já vai do Pretório além,
e a turba que ali vagueia
em torno do seu palácio
é Galileia do Lacio
que a ver o martyrio vem!
34
Nus os pés, e semi-morto,
a esp'rança posta nos ceos,
transpoz o pórtico horrendo
d'esse congresso tremendo
de Scribas e Phariseus
brazonados de christãos!
e ali, por medo d' Augusto,
novos tímidos Pilatos,
traidores á sua crença,
lavram da morte a sentença,
lavando as tremulas mãos!
Mas tu, Jesus, podes tudol
do teu Vigário tem dói
solta a lingua d'este mudol
esmalta o chão dos abrolhos!
dissipa a nuvem dos olhos,
do cego de Jerichó!
Engasta no ceo de Roma
a estrella maga dos Magos!
converte eto urnas d'aroma
os antros prenhes d'estragos
de seus repletos paioes!
Traz'-lhe á perdida memoria
que as tuas armas são cruzes;
que espadas, lanças, e obuzes,
nem servem aos teus heroes,
nem são para a tua gloria!
35
Dize ao Lazaro que sufja
da sepultura em que jaz,
que troque o saial da guerra
pela estamenha da paz!
que deixe aos reis essa gloria
de se matarem sem dó,
sendo o premio da victoria
mais alguns metros... de pó.
Se os braços cultos da Europa
lá entre os bárbaros chins
devastam, roubam, e queimam
palácios, templos, jardins,
se, além, a Polónia geme,
da Rússia ao mando feroz,
se a Hungria braceja e freme
sob o cutello do algoz,
se á pobre da Irlanda presa
a Inglaterra tyranniza,
e se a Áustria manda em Veneza,
e a França em Sabóia e Niza,
se contra as briosas Quinas
se empina o Leão de Hespanha,
como em eras que lá vão
contra Aragão e Sevilha,
tome Roma e não ruínas
a ovante cruz da Sardenha!
não vá de Christo o Vigário
macular o seu santuário
36
por um ignóbil quinhão
de tão iníqua partilha!
Jesus crucificado, abre os teus olhos
do alto d'essa cruz!
d'esta nova Babel salva-nos todos!
acode-nos, Jesus!
Neste dia solemne em que as cidades
só deviam chorar,
ferve em ódios o mundo; e passa o homem
sem ver o teu penar!
Do norte ao sul, da Assyria ao Novo-mundo>
no dia da afflicção
a voz d'alarma só responde aos psalmos
do santuário christão!
Se o florido pomar vestisse luto,
soubera a tua dor!
e se as aves do ceo vertessem prantos,
choravam-te, Senhor!
O homem perde as crenças, como perde
as flores um Jardim!...
Em se finando a derradeira crença,
que ficará por fim?!...
37
Jesus! se o mundo se agita,
dá-me descanço, Jesus!
faz'-me grama parasita
encostada ao pé da cruz.
Faz'-me insecto da ramada
que ninguém vê na amplidão;
quero, i sombra do meu nada,
perder-me na solidão.
Faze-me fonte na serra
que ninguém bebe, nem vê;
tira-me os mimos da terra,
mas dá-me as crenças e a fé!
Que eu sinta sempre o teu nome
misturar-se aos prantos meus;
que eu possa morrer de fome
abençoando-te, ó Deus!
Sexta- feira Santa, 29 de março de 1861.
II
ROSAS PALLTOAS
n
ROSAS PALLIDAS
A MEU PAE
A ti, meu pae, as minhas Rosas pallidas;
não tenho mais que te offertar no mundo,
Distinctos ais! esmorecidos cânticos!...
mesquinha paga ao teu amor tão fundo!
Sempre em teus olhos me sorriram júbilos;
sempre os teus braços me acolheram francos!
Se alguma c'rôa me destina a gloria,
cinge com ella os teus cabellos brancos.
/
LE ROI EST MORTl-VIVE LE ROI!
Na corte do rei vivo o lugar nobre
pertence ás ambições, ás excellencias,
ás honras, á vaidade.
Do rei morto no fúnebre cortejo
o povo tem' brazões, e as preeminências
decretadas a saudade.
44
Quero pois vir ás festas do sepulchro
cTaquelle que as saudades nos roubaram
da vida no verdor.
Pago meu preito á morta magestade;
ultimo sou talvez dos que choraram,
não ultimo na dor.
Tomou-me o pasmo a voz, quando de luto
vi toda uma nação, muda, em quebranto,
ao pé d'um ataúde.
Quie perguntar. .. cerraram-se-me os lábios;
o coração negou-me os ais e o pranto;
os sons, o alaúde.
Julguei que um génio mau co'as azas negras
em sonho delirante me assombrava
pairando sobre mim;
e que o braço marmóreo d' um gigante,
sobre o peito poisado, me esmagava...
Mas acordei por fim!...
Não era sonho: a verdade
era ante mim assentada,
dura, cruel, sem piedade,
toda de crepe vestida,
mostrando na mão mirrada
a c'rôa real partida!
45
Não era sonho o cortejo,
e o rouco som dos obuzes
das fortalezas do Tejo,
núncios de tantos martyrios,
nem as mil pallidas luzes
das longas alas de círios!
Nao era sonho a saudade
que um povo leal, inteiro,
na miséria da orfandade
em longo clamor carpia,
sobre o asilo derradeiro
onde seu pae se escondia!
Não era sonho! tão moço,
partiu-se de magua dura
esse coração tão nossol
e, na estação dos amores,
quando todos têm ventura,
teve elle da campa as flores!
Era uma sina! a desdita
tinha-lhe a vida algemado;
como a silva parasita,
que ficou preza na leiva,
se enrosca ao roble copado
roubando-lbe sombra e seiva,
46
"Um dia, a regia criança
perde o materno carinho;
íbge-lhe a pomba da esp'rança,
que era a imagem da virtude,
e el-rei fica tão sósinho
entre a c'rôa e o ataúdel...
A alva flor da laranjeira,
que era na trança enlaçada
da regia esposa fagueira,
enlevo de povo e noivos,
caiu no chão transformada
em tristes, gélidos goivos.
Immerso em tanta orfandade,
ao ceo levantava os olhosl...
homem, lá tinha a saudade!
rei, não podia ter prantos!...
Aif que cilicio d'abrolhos,
que eram tão duros e tantosl
E o cálix não era enxuto!
Por complemento de maguas,
vem sobre o luto mais lutol
as tão queridas infantes
lá vão por cima das aguas
viver em terras distantes!
47
El-rei foge ao ermo paço
e ao vozear das cidades:
busca a fadiga, o cansaço;
mas, da desgraça no cumulo,
quando ia matar saudades
por suas mãos abre um tumulo!
Que larga historia de dores
é d'el-rei a curta historial
O' harpas dos trovadores,
memorae-lhe a vida em cantos I
numa epopeia de gloria,
numa elegia de prantos!
Vinde, altivos soberanos!
chorae o vosso modelo
no velho rei de vinte annos!
E os que o viram sobranceiro
aos vagalhões do flagello,
chorem seu régio enfermeiro!
Por isso é pezado o luto;
por isso a pena é martyrio!
Não se encontra um rosto enxuto
hoje, logo, no outro dia!
tornou-se a magua em delírio!
tudo el-rei nos merecia.
48
Por isso a Europa enlutada
veiu ao fúnebre cortejo
chorar co'a grey consternada,
queimar-se nas mesmas fragoas,
e ás tristes aguas do Tejo
juntar o pranto das maguas.
Se do luto as tristes cores
são, das cortes na pujança,
prova d'affectos e amores,
os signaes de penitencia
eram na corte da França
encargos de consciência.
O mundo aprecia e aponta
num logar d'honra na historia,
tarda embora, a desaffronta.
Das Tulherias o pranto
vinga d'el-rei a memoria,
e a nação que o chora tanto.
E' morto el-reií Nas sombras do futuro
que novas eras guarda o tempo á grey?
Deus dê descanço eterno ao rei finado,
e bênçãos, paz, e gloria, ao novo reif
AVE, LABOR!
A» CIDADB IISTVICTA.
(Poesia apresentada pela Imprensa KacioDâl, de Lisboa, na Exposição do Porto)
Porto, que viste o fogo, o sangue, e os lutos,
que formaram cortejo ao novo sólio
da augusta liberdade,
da arvore que plantaste colhe os fructos,
tu, que lhe foste berço e capitólio,
sempre leal cidadet
50
Tu, que a viste nascer, surdir do abysmo,
entre o immenso fragor de cem batalhas
na fratricida guerra,
deste-lhe: sangue e fogo— por baptismo!
por c'rôa— o teu diadema de muralhas!
por throno — a altiva Serra!
Faltava a sagração:— dás-lhe hoje o templo!
Romeiros liberaes, vinde ao festejo
do trabalhar fecundo!
para todos ha culto, e gloria, e exemplo;
a Industria espera em festival cortejo
a pátria, a Europa, o mundo!
Nova cruzada os povos chama á gloria;
nova Jerusalém convida em brados
para novas conquistas;
cantará a epopeia a incruenta historia
de melhores heroes; nomes laureados
âHndustriaes e artistas,
dos que ao diurno labor o braço alteiam,
e que, após o serão, sonham co'a vinda
da preguiçosa aurora;
d'esses em cujas frontes se incendeiam
diamantes de suor; c'rôa a mais linda
que a mão de Deus inflora!
51
"Vinde, que é Deus aqui 1 só d'elle ao nuto
surgem de tanta gloria estes fastígios.
Quer Deus que lhe consagres:
tuas flores,— jardim; pomar, — teu fruto;
industrias, artes, — vossos mil prodígios;
sciencia, — os teus milagres.
À Imprensa vem á festa! nem podia,
mestra d'exemplos, recusar o exemplo.
A hóstia é do sacrário;
o apostolo, do mundo; o sol, do dia;
o verbo, da doutrina; o altar, do templo;
do altar, o lampadário.
Do templo do trabalho é hóstia, verbo,
sacrário, luz, sacerdotisa, a Imprensa,
a mãe da liberdade,
<jue ampara o génio em seu trabalho acerbo,
^ abarca as eras em sua esfera immensa,
prendendo idade a idade.
Dissera Deus ao sol: —«Surge, e alumia !» —
e illuminou-se o valle, o monte, o albergue,
o fructo, a flor, as palmas 1
mas do espirito a luz?!... Chegara o dia:
o seu fiat, emflm, diz Guttemberg,
e fez-se o sol das almas!
5
52
A Imprensa é, pois, no templo. Entre os primeiros
tomando o seu logar junto ao sacrário,
proclama á sociedade:
— «A' festa universal I entrae, romeiros l
abre as portas, Industria, ao teu santuário !
Preside a Liberdade /» —
NO ÁLBUM DE ÀRTHUR NAPOLEÃO
(no reverso da primeira pagina, em que se achava esgripta
a seguinte carta:)
Sr. Thoraaz Ribeiro: — Rogo a v. que seja interprete
da admiração que eu consagro ao talento d'Arthur Napo-
leão. V. tem ouvido que eu por muitas vezes tenho sus-
tentado em publico, tanto quanto posso e quanto sei,
aquelle preito que se deve a uma gloria da nossa terra; e
mais sabe que eu estudo e trabalho para que a minha re-
citação não possa occultar as esplendidas imagens qce o
autor derrama nos seus escriptos. Portanto, diga a Ar-
thur Napoleão que nos applausos que merece o seu ta-
lento e nobre trabalho vão também os modestos elogios
de
Maria do Geo da Silva Mendes,
Lisboa, 4 de maio.
54
Que queres tu de mim? Chamaste-me, senhora,
do ceo da minha Beira estrella a mais fulgente ?
Que eu suppra a tua voz ?!.... Pois tu, canção da aurora,
precisas do meu canto a musica plangente ?
Tu és o rouxinol; eu, rola que se queixa;
tu'alma vôa e canta; a minha chora e dece;
tu és o hymno altivo; eu, a singela endecha I
tu és o amor e o mando; eu, a saudade e a prece.
Tu és a primavera; o outomno eu sou... sem fruto;
tu és a luz, e eu, sombra; és harmonia; eu eco;
tu és o lyrio branco; e eu, lyrio, com meu luto,
sou junto a ti... cypreste esmorecido, seccol
Eu fui, talvez, cantor; poeta és tu, que o leio
em teu formoso olhar, tão scismador, tão vago !
és cysne em lago ameno a refrescar teu seio;
eu sou a junca humilde a sombrear-te o lago!
Senhora, o génio é rei, e a formosura, esquiva;
tu és rainha, e vens, co'a fronte coroada,
dar-me, tremendo, a mão, modesta sensitiva!...
És mais formosa assim ! não és rainha, és fada !
55
Nunca me ergueu tão alto a caprichosa sorte f
Ao génio, teu irmão, queres mandar um voto,
e eu, plenipotenciário, hei de ir de corte a corte?!..
Irei, que o mandas tu ! irei ao mundo ignoto f
irei ao templo augusto, ao vosso capitólio,
onde o laurel e o throno é feudo de conquista í
e, após depor a offrenda, e, após do augusto sólio
ter os degraus descido, eu lhe direi:
— «Artista f
abre esse livro, e vê na pagina primeira
o que é dar culto ao génio, o que é dar preito á gloria f
A sorte é-te propiciai a fada é-te fagueira !
e é mais que o dom dos reis ficar-lhe na memoria !» —
Cumprido o voto assim, despede-me, senhora,
do ceo da minha Beira estrella tão fulgente I
Adeus, irmãos no génio, e ambos canções da aurora,
que eu volto ao meu sol-posto, e á musica plangente f
Lisboa 5 de maio de 1866.
A FESTA E A CARIDADE
{composta expressamente para ser recitada pelo actor santos
no theatro de d. maria segunda
por occasião do beneficio
da associação protectora da infância indigente)
Qui donne aux pauvres, prête à Dieu*
V. Hugo.
Para uns, abre o ceo manhã de flores;
meio-dia de fructos e doçuras;
tarde d'encantos mil; noite d'amores;
sonhos de gloria, affectos, e venturas.
Para outros, as noites não têm lua;
o sol é sem calor; o ar, sem perfume:
o leito... sem enxerga ! a meza... nua t
os armários... sem pão I o lar... sem lume !..,
58
Eis o quadro da vida: entre matizes,
o grupo dos mimosos da existência;
a lida, ao pé, morgado d'infelizes;
e, por fundo, os andrajos da indigência f
Do pobre ao rico ha distancias
cortadas por muito abysmo,
que a sorte, ou, quem sabe ? o egoísmo
(Tespaço a espaço afundou.
Salva-as com aéreos passos
meiga virgem da piedade;
chamou-ihe Deus Caridade,
e o mundo o nome exalçou.
Á noite, a virgem modesta,
a casta filha de Deus,
furta-se aos hymnos da festa,
e, envolta em cândidos veos.
desce a escada sumptuosa;
mãe aos maus, irmã dos bons>
lá vai levar, carinhosa,
a toda a parte os seus dons:
59
Aqui, perfuma, suavisa,
como a aragem matinal,
velho que triste agonisa
na enxerga cPum hospital.
Sai; busca afflicta viuva
na sobre-loja sombria,
e aquece na mao sem luva
mao pobre, engelhada, e fria.
D'ali, sobe a estreita escada,
são-lhe guia afflictos ais,
e encontra na agua-furtada
filhos nus, famintos pães;
e leva esmola e carinho
ao casal desventurado,
que foi armar o seu ninho
entre os musgos d'iim telhado;
imitando o que entre flores
faz o amante rouxinol,
que só conta os seus amores
á noite, ás auras, e ao sol.
60
Onde assoma o transparente
sendal da cândida fada,
tudo é formoso e ridente
como os prismas da alvorada:
as rugas caem das frontes;
os prantos fogem dos olhos;
as rochas abrem-se em fontes;
brotam lyrios dos abrolhos.
Se descerra os purpurinos
lábios de finos rubis, '
suas palavras são hymnos
que Deus acceita e bemdiz !
Crôa de mysticas flores
lhe entretece a loira trança;
nos olhos riem-lhe amores;
n'alma, a fé; no seio a espVança,
E quando emfim desparece
aos infelizes da terra,
e, após a nocturna prece,
poisa a face, e os olhos cerra,
61
velam-lbe o leito os carinhos
que ella deu a tanta dor;
as preces dos pobresinhos;
e, á cabeceira, o Senhor !
E pois que vos disse qual seja a virtude
mais bella e querida na terra e na gloria,
deixae-me contar- vos, ao som do alaúde,
um só dos seus feitos que vivem na historia:
No tempo em que passou no mundo esse terrível
Napoleão, — o heroc ! o immenso f o incomprehensivel !
o anjo do extermínio f o raio ! o deus da guerra,
que enriquecia a França empobrecendo a terra, —
um arcebispo, um velho... um santo, era pastor
d'almas que apascentava aos olhos do Senhor !
Faminto era o rebanho, estéril a campina,
e á beira-mar o aprisco, — a igreja.
Era divina
a missão do bom velho ! Oh ! sim ! mas que tormento
para o triste pastor ouvir balar o armento !
62
queimada a urze ao monte, as relvas aos valleiros !
sem alimento as mães ! sem leite os seus cordeiros !..,
Deu-lhe o quanto podia: a prece, a espYança, o pão,
tudo o que lhe escogita o honrado coração !
e, quando achou vazia a sua mão tão nobre,
julgou-se mais ditoso: era o primeiro pobre !...
Uma noite o bom velho acorda antes da aurora !
rumor sinistro o esperta !...
— «Ai, Deus ! pois lá por fora
anda a chorar disperso o meu rebanho, e em risco ?!...
Quem sabe, ó Deus, se o lobo entrou no manso aprisco?!
Acode-lhe, Senhor !...» —
Corre para a janella...
abre... espreita... No ar não luz nem uma estrella !
O eco negro a poisar nos tectos da cidade,
raios a mil e mil rasgando a escuridade,
os roncos do trovão, e o sibilar do vento,
um cahos revoltoso o mar e o firmamento,
foi tudo quanto viu, e ouviu !
Cheio d'horror,
eleva o pensamento ao Deus do eterno amor,
e cai.
63
Horas depois, os raios da alvorada
foram beijar-lhe a fronte, altiva, e tão sulcada
pelo minar do estudo e o reflectir da idade.
O vento adormeceu; caíra a tempestade.
Ergue-se, e da janella...
Ai I que montão d'horrores l
Falta na praia um bairro ! Os pobres pescadores
lá viram perecer nas ondas do seu mar,
muitos, a própria vida f outros, o barco e o lar l
Empenha a cruz e o annel; e o triste bando implume
teve naquelle dia abrigo, e pão, e lume.
Mas... no seguinte, o almoço?! embora fosse parco !
e construir-lhe um ninho ?! e dar-lhe a rede e o barco ?!...
Nisto pensava á noite o homem do Senhor,
co'os olhos rasos d'agua, immerso em negra dor t
Elie, tão pobre e velho I... A quem pedir sustento?!...
64
A ponto, uns sons cTorchestra entraram no aposento !..
Ouviu... pasmou!...
— «Meu Deus ! em noite assim funesta*
quando a miséria chora, os hymnos d'uma festa !...» —
Medita longo lempo I... Após, como se a chamma
do alto o illuminasse, humilde ajoelha, e exclama:
— «Meu Deus, que ouviste a prece ao pobre peccadorf
comprehendo o teu decreto, entendo-te, Senhor !
Ha baile na cidade t a musica nvo attesta !...
Falta-me o annel e a cruz f... embora 1 hei de ir á festa!» —
É meia noite. No baile
esplende inteira a alegria,
luzes, flores, e harmonia,
brilham na fausta mansão.
IrtÔanima-se o jogo e a dança;
receadem tnais os perfumes;
ardem mais vivos os lumes;
pulsa miais o coração.
65
Reina o prazer f... Mas a orchestra
destoa, pára, emmudece !
o enthusiasmo arrefece,
e o redemoinho... parou !
Ninguém mais a voz levanta í
reina um silencio agoireiro !
Corre ao fundo o reposteiro,
e o velho arcebispo entrou.
Todas as frontes se acurvam
ante o pastor venerado,
que ao seu báculo encostado
percorre lento o salão.
Todos acorrem ás bênçãos
que elle aos dois lados envia,
e têm por d' alta valia
beijar-lhe a rugosa mão.
Chega á dona do palácio,
que estava immovel, absorta,
regelada, semi-morta,
perante o vulto fatal.
Para ella, o santo velho
era um remorso que entrava
no seu baile, e que a buscava
hirto, livido, mortal I
66
• ••■...■••.a.
O velho quebra o silencio:
— «Em noite de tanta dita
se vos faço uma visita
importuna, perdoae !
Na vossa casa, senhora,
tendes festa, á festa venho;
e nunca parece estranho
que os filhos visite um pae.
Sabeis o que vai lá fora ?
contraste dos vossos brilhos,
tenho um rebanho de filhos,
chorosos, famintos, nus.!
deixei-os no meu albergue;
ia... nem sei para onde ia !
da vossa festa a harmonia
aqui meus passos conduz.
Encostae-vos ao meu braço;
tomae-me esta bolsa: agora
vamos mendigar, senhora,
erguendo supplices mãos:
— Pelo amor de Deus, senhores !
esmola, ricos e nobres !
esmola aos meus filhos pobres !
esmola aos vossos irmãos !» —
67
Diz; e a turba dos convivas
foi pressurosa á porfia
dar quanto ali possuía,
e prometter mais e maisf
As damas, dos seus enfeites
arrancam oiro e brilhantes,
braceletes e diamantes,
anneis, perlas, e coraes.
O velho, chorando e rindo,
exclamou:
— «Estes penhores
heis de havel-os, meus senhores,
com largos juros nos ceosl
Vós, minhas cândidas filhas,
ficais assim mais formosas:
para rosas bastam rosas!
valeis mais ao mundo e a Deus!
You fazer outros ditosos;
a minha missão foi esta;
reviva, recresça a festa!
folgae, meus filhos, folgae!» —
Eu digo como o bom velho:
folgae! que a festa consola
a quem hoje deu esmola
a tantos filhos sem pae.
Lisboa, 14 de novembro de 1862.
6
NO ANNIYERSARIO DE JÚLIO DE CASTILHO
[(WPROFISO)
É rito nobre coroar poetas:
o mármore, o painel, taes os conservam,
fazendo-os immortaes.
Às c'rôas são diversas: umas vezes
a dita as entretece d'alvas flores;
outras, os loireiraes
offerecem festoes da rama illustre
para a épica fronte do poeta
que ergueu altas canções.
70
Muitas são de cypreste, e foi, bem sabes,
de loiros, malmequeres, e saudades,
a c'rôa de Camões.
Foi de saudade e myrtos a d'Ovidio;
d'astros e nuvens a d'Ossian e Homero;
de parras a de Horácio;
de raios a de Milton! a Virgilio
coube a coroa cívica de loiro,
e flores do seu Lacio.
A tua... é bem singela: é só de rosas;
mas teceu-t'a a amisade e o enthusiasmo
d'ardentes corações;
a civica ha de vir, crê no futuro.
Canta, poeta, sem cuidar d'ingratos!
que assim cantou Camões!.
Luz, 30d'abrildei863.
OS MEUS TRINTA AMOS
(n'um álbum)
A vida é monte erguido entre dois mares,
que se avulta nas ondas arrogantes
do norte para o sul.
O seu manto, nem sempre é relva e flores;
o caminho, nem sempre suave e largo;
o ceo, nem sempre azul.
72
Do nascente ao sol-posto sobe a estrada,
e eu por ella subi; da vida ao cume
eis-me chegado emflm t
A fatídica hora dos trinfannos
no relógio fatal que a vida conta
soou já para mim.
Antes (pte eu desça alem, quero da altura
medir, entre os dois mares, a distancia
do meu peregrinar;
quero nestes momentos de repouso
os dois barcos saudar, que me saúdam,
neste e naquelle mar:
Este... conheço-o bem ! era o meu berço í
baixel em que embarquei do nada á vida,
ao pê de minha mãe !
Naquelle... ergue-se a cruz negra do esquife!. ..
Hei de embarcar ali da vida ao nada,
sem me velar ninguém i
73
Pedir cantos» senhora, a quem da vida
perdeu todo o matiz dos róseos sonhos
d'aurora juvenill...
não porque a vida me vá longa, ou negra»
mas porque esfaima é tão deserta e árida
que nunca teve abril!...
A vida bonançosa, a paz eterna,
enerva o coração e o pensamento
nos braços d'ocios vis.
O génio nasce e cresce entre as tormentas !
Senhora, attenta bem como ha desgraça
até no ser feliz !
A vida sem paixões, sangue sem febre,
é calmaria d'alma, que vegeta,
murcha, inodora flor.
Os gozos fáceis, a ventura plácida,
são paraiso d'èxistencia inerte;
mas eu prefiro a dor t
Prefiro a dor; que essa exalta
o sentimento, a paixão !
se o riso nos lábios falta,
o pranto nos olhos, não.
74
Nem dor, nem riso! ... Eis a calma
' do morto mar do meu ser f
Não reverdece uma palma
na aridez do meu viver !
Existo... não sei se existo!
Sem ter desejos, nem fé!...
mas, se ao mundo eu disser isto,
o mundo pasma e nao crê.
Tu acreditas, que és pura,
e eu não te posso mentir;
juro-o por tua candura,
por teu sincero sorrir.
Não tenho que dar! Trinfannos
morrem hoje para mim;
a idade dos desenganos
já vês que chegou por fim !
Trinfannos que o ócio esconde;
em que eu nem ri, nem chorei !
Trinfannos gastos... aonde?
em que?... com quem?... nem eu sei!..
75
Subi ao zenith da vida,
vou prestes descer ao vai;
na c'rôa da encosta erguida
cravei o marco fatal I
Adeus, mocidade, infância,
que nunca mais hei de ver !
Tenho em frente igual distancia..,
mas é mais fácil descer i
Além acaba o desterro
ao infeliz que ali jaz!
No flm do íngreme cerro
começa o reino da paz f
-Avante f — Desço a ladeira
sem saudade, ou riso, ou dor f
sem plantar uma palmeira !
sem semear uma flor !
Bem vês, é safara, ingrata,
vida sem risos, nem ais f...
Consigno aqui uma data,
deixo um nome, e nada mais.
Lisboa 1 de julho de 1861.
A MADAME LOTTI DELIA SANTA
(na noite de seu beneficio * )
Quem, no templo da harmonia,
colhe hoje os loiros e as palmas ?
quem tem o sceptro das almas ?
quem, o diadema real ?
Que fada quebra o repouso
meditabundo e severo
d'este patriarcba austero,
d'este velho Portugal ?
(*) O producto (Teste benefido foi cedido aos pobres.
78
Que fada, que se transforma
ora em anjo de venturas, *
ora em fonte d'amarguras,
que a loucura, ou a morte, dá f
ora com ducal diadema
cinge a fronte de Lucrécia f ...
Que fronte 1 nem mesmo a Grécia
as viu mais bellas por lá f
É Lotti, a filha das artes !
Lotti, a musa da harmonia !
a que possue a magia
das celestes vibrações !
é Lotti, que, dadivosa,
junto ás festas da grandeza
quer as bênçãos da pobreza,
as palmas dos corações !
Tu sabes, filha da Itália,
que em nossas formosas praias
cresce o loiro, o myrto, as faias,
qual na terra de teus pães;
que este ceo também dá génios;
que este sol tem resplendores;
que as harpas dos trovadores
sabem hymnos triunfaes !...
79
Salve, Lolti! duas c'rôas
te enramara a fronte bella:
uma, é rica; outra, singela;
mas ambas cTigual condão:
uma é devida ao teu génio —
luz d'ethereos esplendores;
outra é prenda dos amores,
deve-se ao teu coração.
E' pobre, que vem dos pobres;
é simples, mas traz encantos;
vem orvalhada de prantos,
mas prantos de quem sorri !...
Fazer chorar os felizes,
e sorrir os desgraçados !...
que fados, Lotti, que fados
o ceo guardou para ti !...
Á nobre irmã de Tasso, á bella irmã d'Ariosto,
ao anjo da harmonia, á musa das canções,
á que a alma nos enleva, e nos inunda o rosto,
saúda jubilosa a pátria de Camões !
CYPRESTE E ROSAS
(NO ÁLBUM DA EXM. a SNft.* Ou MARIA CAROLINA BERQUÓ)
Assim o pedes, senhora I
um canto triste, tão triste,
como a saudade que existe
dentro d'ess'alma que chora,
quando o rosto enxuto e ledo
mostras ao mundo contente,
para esconder-lhe o segredo
da dor que eite oure, enio sente !
82
Oh ! tens razão ! no mais fundo
do peito resguarda as dores !
não sabe o que são amores,
não sabe ter pena, o mundo 1
D'um coração que padece,
as profundas tempestades
não sonda, que não conhece
prantos, martyrios, saudades !
Que penas que me disseste !...
Festa aziaga, infausto dia,
quando ás rosas da alegria
veiu enlaçar-se o cypreste !...
Ai 1 que tristeza nas salas !...
ai 1 quantos prantos vertidos !...
o crepe ensombrando as galas !...
em vez de cantos, gemidos !...
Frustrado o doce agasalho
da mãe !... vós, em dor immersas !...
por sobre as flores dispersas,
lagrimas em vez d'or valho !...
em vez da orchestra, os plangentes
cantos, núncios de martyrios !...
e, por lustres esplendentes,
da morte os pallidos cirios ! i
83
€omprehendo essa dôr, senhora f
sei como a formosa Amélia,
cândida como a camélia
que se abre aos risos d'aurora,
no seu dia anniversario
se ergueu risonha d'esp'rança,
e foi topar co'o sudário
em que era envolta Constança I
Constança I a doce ! a formosa I
que na aurora da existência
sentiu roubarem-lhe a essência
da vida ! tal como a rosa
que ostenta os seus esplendores,
luz, matiz, perfumes, gala,
e após um'hora d'amores
vem um tufão arrancal-a I
Triste, triste anniversario!...
Hm infausto dia foi este 1...
c'rôas, ramos... de cypreste!
sedas brancas... d'um sudário T
brilhantes... fios de prantos t
musica... os ais dos martyrios !
poesia... a dos psalmos santos f
luzes... o clarão dos cirios !...
1
Que dia cTannos, senhora !
que festa triste I e que afflicta
é inda a imagem que habita
dentro <Tess'alma que chora !..,
Ó minha lyra plangente»
cala os sons I porque persistes*
se para dôr tâo vehemente
não achas notas bem tristes ?l...
* ^
Pomba: acolhe no teu seio
meu pobre canto.
Disseste;
quando o teu livro me deste:
— «Vou dar-te o assumpto.» —
Aeceitei-o.
— «Não falles d'amor, d'esp'rança,
mas da dor que me consome 1» —
Possa o nome de Constança
fazer-te lembrar meu nome.
Lisboa, 26 de maio de 1864,
NUM ÁLBUM
Somos dois viajantes: vós, senhora,
andais talvez em busca de prazeres;
eu... sem destino! átoaf
Percorremos um dia a mesma estrada;
o acaso nos juntou, e pernoitámos
no grande hotel — Lisboa.
86
Pois que partis primeiro, auras benignas
vos acompanhem sempre, e vos segredem
meus votos cTamizade.
Se ellas voltarem junto a mim de novo,
que me tragam de vós uma lembrança;
se fosse uma saudade !...
Lisboa, 16 d'abril de 1863.
DIZEM
(num álbum)
És bella ?... dizem que és bella
os que tem tido a ventura
de viver junto de ti;
dizem que és meiga e singela,
que tens alma e tens candura,
e mananciaes de ternura
no teu seio.
Eu nunca te vi, mas creio
nos mil louvores que ouvi !
88
Porque este dizem, senhora,
esta vaga voz que passa
por juuto do trovador,
como entre os risos da aurora
mago som que se esvoaça
nas franças do roble em flor;
esta musica celeste
do bem-dizer, que vai longe,
tem não sei quê de suave,
que lembra o perfume agreste
que entra na gruta do monge I
tem notas dos trillos da ave
que á hora em que morre o dia
vai poisar na cruz d'um ermo,
e exhalar do seio enfermo
caudaes de melancolia !
É pois santa a voz que passa
atravez do espaço immenso,
como um canto solitário;
lembra o hymno que esvoaça
por entre as nuvens do incenso
sob as naves dum santuário i
Creio, sim, porque a minh'aima,
dos cantos filha e da luz,
nunca poude ser esquiva
ás seducções da poesia !
tudo que é bom a seduz f
89
tudo que é nobre a captiva t
tudo que é bello a inebria f
Mas, senhora, a minha lyra,
quando só oiço, e não vejo,
geme triste, nâo se inspira,
como eu quizera, por ti.
Manda, pois, o meu destino
que só o signal d'um desejo
eu deixe marcado aqui:
— Quero offerecer-te um hymno,
mas quando eu disser: — Já vil —
Parada de Gonta, setembro de 1864.
NO ÁLBUM DO MEU AMIGO ROCHA PARIS
Paris: tens um lindo nome,
mas tens um nome fatal 1
não te mettas com Helenas;
não queiras ir dar mais penas
ao teu pobre Portugal !
Podes ter irmão valente,
e acoitar-te ao seu valor;
mas se o pae da rapariga
fôr Achilles, e na briga
nos matar o nosso Heitor?!...
92
Todos nós ficámos gregos!
Muitos Enéas então
treparão pelas encostas,
levando Anchises ás costas
e Ascaninhos pela mão.
Lê muito a historia d 1 Andrómacha;
não a esqueças nunca mais;
no meio dos teus amores
lembra de Tróia os horrores,
o incêndio, o sangue, e os ais.
Tu podes amar um anjo...
quem não ama o que ama Deus?)
Chamasse-se o anjo Helena,
que eu cá, fazia-o sem pena,
dizia-lhe logo— adeus! —
ARBUSTO MANINHO
(AO MEU PARTICULAR AMIGO LUIZ ANTÓNIO NOGUEIRA,
d'angra DO HEROÍSMO,
QUANDO ME PARTICIPOU O NASCIMENTO
DE SUA PRIMEIRA FILHA )
Tu já tens visto arbustos na montanha
que se vestem de flor na primavera,
mas de pallida flor triste e inodora,
e a quem jamais dos vendavaes a sanha
consentiu que ao pastor, á abelha, á fera,
desse um fruto no outomno? Attenta agora
para mim um momento, e has de, sem custo,
achar o meu retrato
nesse infecundo arbusto.
94
Pensa depois em til vê como é grato,
após o trabalhar, achar-se um berço,
ninho alvíssimo e quente, em que descança
avesinha que ri!...
És pae!... Ser pae é viver sempre immerso
em ondas de poesia e d'esperança;
é ser mais seu e nâo pensar em si;
é trasbordar d^amor;
é derramar prazer do seio a flux;
é correr, correr sempre cauteloso,
e não sair do quarto, em derredor
do seu mórbido ninho,
como anda a borboleta em torno á luz,
a abelha em torno á flor;
é presentir um ai, e alvoroçar-se;
aprender só de si que se resume
o almo sustento para o caro implume
em manjares... de leite e de carinho !...
Ser pae é ser bemdito do Senhor I
Triste do ser que ha de viver sósinho
sem ver um fruto de bemdito amor !
triste do arbusto que nasceu maninho,
ornando-o apenas... descorada flor!
flor que te envio, porque o vento adverso
m'a quiz poupar a mim !
depõe-na sobre o berço,
e ao teu anjo dormente dize assim:
95
— «Dorme, filha, meu thesoiro,
ao som das vagas do mar t
róseos anjos d'azas d' oiro
venham teu somno embalar I
No mez dos cantos e flores
nascente, ó rosa gentil I
Deus te dê éden d'amores,
e aromas d'um longo abril!
Primeira estrella fagueira
d'enamorado pallor,
primeira flor da roseira,
primeiro beijo d'amor,
c'rôem-te os iris da esp'rança,
formem teu leito os rosaes,
mensageira de bonança,
pomba da arca de teus pães !
Bafeje a Virgem teus olhos;
o Senhor te firme o andar;
o vento varra os abrolhos
do chão que tens de pisar t
96
Dorme, filha* meu thesoiro r
que eu velo e guardote aqoií
róseos anjos d' azas d'otro
segredam em torno a ti !
Bem longe, em saudade immerso,
tenho um amigo» um irmão,
que te daria por berço,
minha filha r o coração.» —
A SENTIDA MORTE
DO MEU ESPECIAL AMIGO
ANTÓNIO D' ALBUQUERQUE DO AMARAL CARDOSO
Eh bien I prends, assouvis, implacable jostice,
ITagonie «i de mort ee besoin immortelt
LAMiBTm.
O sacrário das preces e dos prantos
abriu-se e nos espera !
Dae ao luto monção, calae-vos todas,
aves da primavera I
Deixae da penitencia aos psalmos tristes
as notas da tristeza i
Onde chora a amizade, é bem que choro
amiga a natureza.
98
No verão da existência a vida é bella,
risonha, e festival !
porque pois do ataúde assim nos pedes
prantos no funeral?!
E nós trazemos prantos bem sentidos
d'alma na viuvez
por ti, de quem ficou triste orfandade
órfã segunda vez !
Por ti, a cuja porta nunca embalde
se encostaram afflictos !
Por ti, que tantas vezes enxugaste
o pranto de proscriptos I
Mais ricos do que tu eram teus pobres,
exemplo de virtude I
Nobre e amigo modelo, em paz descança
além do ataúde !
Começou-te na infância o teu martyrio;
mas, sereno e leal,
tomaste o amor da pátria por divisa !
por senha — Portugal t
99
Para longe, bandeiras bellicosas I
acurve-se o dever
ante esse vulto digno d'Albuquerques.
até no padecer!...
Amigo: pouco vale o meu tributo
de preces e de pranto;
como pae, como esposo, o que recebes
vale mais, é mais santo.
Pezou-te Deus da vida na balança...
o fiel estremeceu!...
Poz na concha d'além tuas virtudes...
e devia-te o ceo !
6 d'abril de 1859.
4l)385í)
8
TRINTA E DOIS ANNOS
(improviso)
Trinta e dois annos! E' tarde t
voltar atraz quem me dera,
a ver nos campos da vida
as flores da primavera I
Vou no pendor 4a ladeira,
e este declivio é fatal !
Como vem dar-me tristezas
o dia do meu natal !...
102
Tudo o que vejo é tão triste I...
Tudo o que deixo é tão bello !...
Gomo hoje tenho saudades
do meu berço tão singelo !
Como estio da existência
me abraza de fogo interno !
como se levantam negras
as nuvens do meu inverno t
Não é que ao ver o futuro
me estremeça o coração;
a sorte pôde vencer-me...
intimidar-me, isso não I
Mas sempre, sempre o meu berço
a campa lembrar-me vem;
porque para a eternidade
a campa é berço também.
E faz tal pena a quem lida
não ver chegar um conforto !...
Vamos t lidar nesta faina,
até que Deus mostre um porto !
103
Para bem longe as tristezas t
valem mais ledos enganos !
bem haja a pura amizade
que hoje me festeja os annos í
Um brinde por vós, formosas !
por vós, amigos leaes !
por todos os que são nossos;
esposos, irmãos, e pães !
Um brinde pelos futuros
de tanta esp'rança em botão !
Vai nelle inteira amizade,
e completa a gratidão t
Casa da Povoa do Arcediago, 1 de Julho de 186&
MIRAGEM
(Á EXM * SNR. a D. MARIA DA GLORIA DA M. P. YELHO)
Eu viajo no centro <Tum deserto;
um mar d'arêa ardente os pés me escalda;
lume vivo do sol a prumo aberto
me tisna a fronte e me incendeia a espalda.
E' de chumbo este ceo triste e inclemente;
o vento. estruge em harmonias bravas
o paiz dos bulcões d'arêa ardente,
onde tem sangue a luz e o sol tem lavas.
106
Paiz immenso, e triste, e sem conforto,
sem virações do mar, sem frescas fontes t
tudo uniforme, estéril, mudo, morto,
dos confins aos confins dos borisontes t
Que mysterio fatal, que negro arcano,
esconde ao mundo este areal tremente ?
berço talvez do temeroso oceano.l...
tumba talvez d'um povo impenitente !...
Se tivessem chorado, os que morreram,,
aqui bouvera fonte abençoada;
mas, quaes seus corações áridos eram»
árida campa lhes requeima a ossada...
E' pois de meus irmãos cinza esta arêa,
onde não voltou mais a primavera ?!...
E eu... que serei? espectro que vagueia
entre pó que foi nobre, e é pó, qual era f
E em vão procuro na soidão calada
um ponto firme a que segure os braços;
sempre estas mãos a tactear o nada t
sempre esta aréa a falsear-me os passos l
107
E vejo nos confins dos horisontes,
em distancia que a vista nunca mede,
cidades e rosaes, pomos e fontes,
e morro de fadiga, e fome, e sede !
E diz-me a febre:— Além, entre essas flores,
ba glorias, ha delicias, ha mulheres t
poeta, accende o estro f eia ! aos amores f
a dita é perto, e tua é já se a queresf
Sus I sus t caminha 1 um dia mais ! avante !
que amor e gloria te reaccenda a esp'rança I
Poeta, apressa a tua marcha ovante !
sob o myrto e os lauréis feliz descança!» —
Enxugo o meu suor; no éden visinho
seguro a vista, recomeço a viagem;
e, gasto em luta o dia... ou não caminho,
ou de mim foge a tentadora imagem i...
Perdi nesta luta os annos
da infância, que vi morrer
no ermo dos desenganos,
no areal do meu viver.
108
Cancei; sentei-me na arêa;
meus olhos não mais ergui;
convicto, firme, na idéa
de que bei de morrer aqui.
O sol mirrou-me os encantos
de tanta nobre ambição;
calcinou-me o riso e os prantos
a lava do coração.
Que tentadora e que bella,
miragem que eu persegui f...
Foge, se chamam por ella,
e cbama, quando sorri !...
Se espreitar, nesse horisonte
hei de encontrada l... bem sei !...
Não quero vel-a defronte;
pão posso correr; cancei !.,.
Sobre esta convulsa arêa,
firme espero as coqtorsoes
da morte, que me rodeia
no esbravejar dos tufões.
109
'té que o vento, despenhado
das azas do vendaval,
cá me deixe amortalhado
nas dobras d'este areal.
Tal a sorte de quem sonha f
Um sonho só me perdeu !...
Tudo é miragem risonha !...
Verdade, estarás no ceo?...
Parada de Gonta, 1858.
1
I
UM MOCHO
(PJASSATEMPO D'UM SERÃO d'INYERNO)
OFF. A UMA EXCELLENTE E ILLUSTRB MÃE
Inda ba muita gente que treme d'agoiros
de sapos, corujas, aranhas, lacraus!
Eu tenho arripios d'ouvir os besoiros,
e fujo dos mochos! Os mochos são maus!
Bem sei que se riem de ver-me t5o fraco,
que estamos no tempo dos sábios profundos,
mas eu terei culpa cTodiar um macaco,
e os olhos d'um mocho redondos e fundos?!..
112
Se eu fosse contar-vos milhares de historias,
que sei, de bisarmas, bruxedos, e fados,
seriam volumes de bellas memorias...
mas Deus me defenda de tantos peccados f
Um caso... esse conto, que foi verdadeiro;
e, visto que estamos tão juntos e sós,
ouvi-me as maldades d'um mocho agoireiro...
mas isto, segredo f que fique entre nós !
Deu-se o caso n'uma aldeia
d'esse nosso Portugal,
porque na bella Ullyssea
quem podia crer em tal ?
Senhora nobre e formosa
foi n'uma granja viver;
era mãe tio carinhosa
como as mães que o sabem ser.
Às faces alvas e bellas
faziam lyrios corar;
e invejavam-lhe as estreitas
os raios de puro olhar.
113
Nas horas dos seus tormentos
erguia os olhos aos ceos;
todos os seus pensamentos
voavam puros a Deus !
Se orava por seu esposo,
por seus filhos, pae, e irmãos,
Deus sorria carinhoso,
€ eram dons a plenas mãos.
Entra um dia a febre ardente
naquelle asylo do amor,
e uma filhinha innocente
caiu no leito da dor !
Era o quadro do martyrio
aquelle grupo gentil !
E' triste murchar-se um lyrio
nas alvoradas d'abril.
A filha, encostando a frente
ao seio da triste mãe,
derramando pranto ardente,
e a mãe a chorar também t
114
— «Mãe: eu tenho frio e sede f
Minha mãe, por teu amor !
pôe as mãos ! ajoelha e pede
por tua filha ao Senhor !» —
— «Não chores, filha ! são tantos
os rogos que envio a Deus !...
Já me conhece os meus prantos,
e basta que elle oiça os meus í...»
— «Mãe, faze-me outros carinhos !
leva-me longe d'aqui !...
mostra-me o rio e os barquinhos
e as flores que inda hontem vi !...
Se abririam mais os talos
que nos arbustos deixei?!
Quero ver os meus cavallos
que tanta vez abracei,»—
— «Irás, filha, e nos meus braços !
lá te espera o sol e o ar,
e a harmonia dos espaços,
aves, flores, terra, e mar.» —
115
Saíram. O mar e os montes
sorriam á triste mãe;
o seio dos horisontes
tem seus afectos também.
A filha entre-abre um sorriso;
á boca volta o rubi,
Um raio do paraiso
descera e poisara ali !
Expande-se o firmamento !...
Os olhos têm fogo e luzf...
Eis nisto um mocho agoirento
bateu as azas!... — «Jesus t...
um mocho na minha herdade I
e a poisar tão perto !... ali !...
Mensageiro da maldade,
mocho disforme, fugi I
Meu Deus, tí&o temais q*ie esteja
a tremer do encantador !
mas se olha com Unta inveja
o meuthesoiro, Senhor t...
116
Vede-o ! vede-o tão pasmado !..,
ai, filha f... esconde-te aqui !...
Senhor, despede o malvado f ...
Mocho, deixae-nos f fugi !
Não venhas trazer desgraça;
estes lares não são teus !...
No manto da tua graça
esconde-a d'elle, meu Deus f
Salva-a, Senhor dos senhores,
já que outro amparo não tem f
D^im mocho contam-se horrores..,
eu sou christã... mas sou mãe.
Um mocho na minha herdade f
um mocho que eu nunca vi l
Senhor mocho, por piedade,
eu tenho medo f fugi f » —
Em vista da senhoria
o mocho ergueu-se e partiu.
A innocente, no outro dia,
cheia de vida surgiu.
i! 7
Fique a historia registada;
mas em segredo... entre nós f
Um mocho não vale nada;
mas eu tenho medo !... e vós ?
Lisboa, 1864.
NO ÁLBUM
DO MEU AMIGO A. DE GOUVEIA OSÓRIO
Álbum, és junto ao mar a inaccessivel plaga
onde todo o poeta encalha e emfím naufraga.
Na capa deve ler-se: — «Amigos, aqui jaz
a fama (Tescriptor de muito bom rapaz !...»-
Antonio, a praia má nâo tem sequer um porto t
aqui te digo adeus, e dou-me já por morto.
ADEUS
(para ser recitado, no brazil, pela nossa primeira actriz,
kmilia das neves)
Brazil, já vou partir ! Eis o tremendo instante
de vos deixar emfim, a vós, que sois tão meus !
à pátria irmã da minha, irmã formosa e amante f
e ás palmas t e ao triunfo t Adeus, Brazil t Adeus t
Vim, peregrina da arte, em férvida romagem
pedir ao mundo novo — amor, ardência, e luz.
De muito me sorria em celestial miragem
leu rosto virginal, terra de Santa Cruz.
122
Ha muito que anhelava o enthusiasmo ardente
que me de cá sorria e me bradava além:
— «Oh f vem, sacerdotisa f o templo está patente;
o altar, accezo; e a orchestra, á tua espera! — vem !»■
Vim demandar o templo... achei um capitólio f
palmas, o pavimento; o sobreceo, lauréis;
a arte, que me sorri, diz-me que ascenda ao sólio;
vestem-me a stringe e o manto os crentes mais fieis t
Subo ao altar submissa... eis o estrondear da festa
a dar-me fogo ao seio, a erguer-m'o de paixão l
Onde era a pobre actriz que vinha tão modesta?!..*
Ó enthusiasmo ! ó gloria ! ó alma! ó coração !
Nao mais !... Corre, meu pranto ! Após o sol da gloria
as trevas da saudade, a inconsolável dor !...
De tudo resta só... fiel, grata memoria,
que sempre hei de guardar entre a saudade e o amor í
i
123
Que luto é o luto d'alma ! alma que se desterra
partido o seio em dois, e em dois affecto igual !
eu volto ao meu paiz... mas deixo a minha terra !
Consente-m'o, Brazil f consente-o, Portugal I
Adeus ! já vou partir f Eis o tremendo instante
de vos deixar emfim, a vós, que sois tão meus f
á pátria irmã da minha, irmã formosa e amante f
e ás palmas ! e ao triunfo ! Adeus, Brazil f Adeus f
NO ÁLBUM
DÁ BXC." SNR.» D. MARIA ANNA PAES BARRETO,
DE PERNAMBUCO
Ave estrangeira, soltas
o vôo altivo ao largo !
é-me tão triste e amargo
pensar que já não voltas !...
Vi-te um momento, e após,
fantástica visão,
levas comtigo a luz !
e nesta cerração
fica a pezada cruz
d'uma saudade algoz !
126
Nao crês ? teu alto espirito,
que nesse olhar transluz,
abona-te os protestos
que solta a minha voz.
Vae! vae-te ! e lembra sempre
esfhora em que te vi !
que não te esqueça o culto
que ficas tendo aqui.
Ave estrangeira, soltas
o voo altivo ao largo f
oh ! como é triste e amargo
pensar que já nao voltas !
Lisboa, 9 d'abril de 1865.
A MINHA ESTRELLA
A. • • •
A minha estrella é tão bella,
é tão brilhante no ceo,
que eu vivo e morro por ella I
mas este amor é só w&u;
só I que este segredo amigo
ninguém no mundo ouvirá:
commigo sempre; commigo
Ba sepultura entrará t
128
Ai (Telia, ai de mim, se um dia
transluzisse o meu amor !
Estrella, quem julgaria
virginal o teu pallor ? !
Coraras d'outras estrellas
ao motejo desleal,
tu, a formosa entre as bellas f
tu, a angélica vestal !
que tudo se crê manchado
ao fatal contacto meu I
se digo um nome adorado,
na pobre lanço um labeo !
Sou tal como ave agoirenta
em seu nocturno pregão
fazendo coro á tormenta t
Vê tu que negro condão !
Já vês, estrella, que o nivel
que nos deu raias fataes
poz entre nós o impossível !..,
Por isso te amo inda mais i...
129
Vive entre os astros, ó bella,
não queiras nunca descer t
antes quero amar-te estreita,
do que abraçar-te mulher f
Não desças do firmamento,
do teu ceo, do teu altar,
ao baixo nivelamento
em que me vês rastejar.
Se do ceo teu rosto é filho,
se é teu pallor divinal,
não queiras manchar-lhe o brilha
nas lamas do tremedal.
O Deus que tudo reparte
compensa-nos tudo aqui:
sei que não posso lograr-te...
mas posso morrer por ti.
E por ti morro, alto o digo í
por ti, meu santo fanal!
meu astro bondoso ! amigo t
minha cândida vestal !
«30
Sou qual nauta aventureiro,
que, a sua estreUa a mirar,
busca um porto hospitaleiro...
e acha sempre o ceo e o mar.
Nunca I nunca !... pois é crivei?!
que fazeis, marcos fataes ?
fazeis... tentar o impossível I
querel-a, amal-a inda mais I...
Parada de Gonta, outubro de 1856
MINHA BARCA !
(1 EX. 01 " SNB.* D. J. G. GAYICHO)
Minha barca, ao largo ! ao largo i
longe a praia, longe o mundo t
ao sentir, que é tâo profundo,
a soidâo somente apraz.
Fiquem lá na terra embora
os mimosos da ventura;
barca, dá-me a aragem pura,
as soidões, o ermo, a paz.
10
132
Dá-me a paz, que entre os humanos
chamo em vão, e em vão desejo;
onde busco e nunca vejo
o que pede o coração;
onde espiam nos meus olhos
um segredo, um sentimento,
e um ouvido ha sempre attento..-
Barca, dá-me a solidão I
Proa ao mar, e o rumo á sorte,
minha barca airosa e bella !
venha o sul ! venha a procella í
que te importa o temporal ?
Sobe as vagas 1 desce 1 voa I
rasga a vela I quebra o leme t
Coração triste não teme
escarceos, nem vendaval I
Adeus, praia ! adeus, familia f
adeus, prados 1 adeus, relvas t
adeus, cânticos das selvas I
adeus, rosas dos salões !
minha barca, solta e livre
como a rosa destroncada,
vai contente acalentada
entre os braços dos tufões»
133
Se eu achar por sepultura,
ao fugir do mundo ás maguas,
vosso abysmo, ó fundas aguas,
quem pranteia o martyr ? quem ?f
E se um vento bonançoso
me encontrar sósinho e absorto,
e levar a barca a um porto,
quem me acolhe ali? — ninguém I...
Minha barca, ao largo ! ao largo f
longe a praia, longe o mundo !
ao sentir, que é tâo profundo,
a soidâo somente apraz.
Fiquem lá na terra embora
os mimosos da ventura;
barca, dá-me a aragem pura,
a soidão... a morte em paz !...
VERSOS
QUE OS FILHOS DE CAMILLO CASTELLO BRANCO
OFFERECERAM
COM UMA COROA DE LOIROS '
A ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO
NA OCCASIÃO SM QUE ELLE ASSISTIA Á INAUGURAÇÃO
D'UM MONUMENTO
QUE LHE ERA CONSAGRADO
NA QUINTA DE S. MIGUEL DE SEIDE
Por entre cantos e flores
chegaste, rei da poesia,
como um clarão <f alegria
jorrando em mansão d'amores.
Onde ha rei, ha sceptro e sólio f
Rei, vimos trazer-te a c'rôa.
Tens maior corte em Lisboa,
não tens melhor capitólio.
136
Somos de troncos robustos
os loiros, os tenros gomos.
Das flores surgirão pomos?...
se Deus regar os arbustos I
Porque és grande, hão de os vindoiros
dar-te a sagração dos hymnos;
porque és bom para os meninos,
toma esta c'rôa de loiros.
Nossa c'rôa e nossas flores
guarda em saudosa memoria; —
o monumento é da gloria;
a cYôa é só dos amores.
Vais partir ! leva-a comtigo,
e jura por teus carinhos
que, em nós já sendo homemzinhos,
serás nosso mestre e amigo.
Quinta de S. Miguel de Seide, julho de 1866.
JÁ?!
(A ...)
Já? f tão cedo o sol fulgente
foge do nosso hemispherio,
e ficámos sob o império
d'uma noite escura e só?!
.Porque veiu a luz do oriente
mostrar-nos tantos fulgores,
para venturas e amores
tudo vermos feito em pó ? 1
138
Não vale mais nascer cego
do que ter vista e perdel-a ? i
Lembra a flor, e lembra a estrella*
que amámos. Que negra dor !...
E que ancioso dessocego,
nos effluvios da saudade,
que exbala a flor da amizade,
que chora a estrella do amor I...
— Adeus — é triste e agoireiro f
e os corações que desune,
se nova estrella os reúne
ás vezes... nem todos são.
No momento derradeiro
d'um adeus de despedida,
murcha sempre a flor da vida,
chora sempre o coração í
Adeus ! Que tristeza agora i
qqe longa melancolia 1
vermo-nos inda outro dia
quem sabe se a Deus apraz ? f
Adeus, fulgores d'aurora !
adeus, iris de bonança i
ó rosas, nuncias d'esp'rançat...
adeus, ó pombas da paz t...
i Cantiga popular»
139
O prazer dura momentos;
e lega sempre a amizade,
num tributo de saudade,
tristezas de solidão t
De solitários tormentos
cheia a balança da vida,
chega a quebrar d'opprimida
seu fiel, — o coração I
Parada de Gonta, 15 d'outubro de 1858.
LOUCURAS
(A ...)
Tudo assim vai ! tudo vacilla e verga f
tudo se esfolba, se esmorece e pende I:
o roble adusto que o tufão posterga,
a flor d'um dia que uma brisa offende I
Tudo assim vai I Na solidão, perdida,
morre a affeição, á mingua d'uma palma;
a fé mais viva se esmorece n'alma;
no seio, a flor; e no sepulcro, a vida.
142
O ramo que hontem, conchegado ao peito,
sorria aos olhos, perfumando as galas,
hoje esfolhado pelo chão, desfeito,
vôa disperso tapetando as salas.
A virgem que hontem scintilava pura,
estrella cTalva d'um risonho dia,
hoje... dá risos que não têm magia,
hoje... tem frases que não dão ventura t
Tudo assim vai ! tudo vacilla e verga !
tudo se esfolha, se esmorece, e pende !:
o roble adusto que o tufão posterga,
a flor d'um dia que uma brisa offende i
Tudo assim vai ! Na solidão, perdida,
morre a affeição, á mingua d'uma palma;
a fé mais viva se esmorece rfalma;
no seio, a flor; e no sepulcro, a vida 1
Que triste que estou nesfhora
de desconforto mortal !
como asylo sepulcral,
onde o sorriso não mora I
143
•••••■■■•■>.•
Parecem meus tristes ais
prantos de noite sem brilhos,
lamentos d'ave sem filhos
nas franças dos cyprestaes.
Alma presa esmorecida
entre as algemas da dor,
como entre cardos a flor
em rocha (Termo nascida t
Teu brilho escondido em pó,
bastarda das primaveras !
estranha ás auras e ás feras,
triste, murcha, inglória, e só !
Mirram-te nesses algares
as labaredas do sol;
vais apagar-te, pharol
dos meus inhospitos mares...
vais, que ninguém te conduz
mais óleo durante o dia,
nem tens nocturno vigia
que alimente a tua luz !
144
Mirra a flor o sol ardente,
se o orvalho a não vem salvar;
e apaga as luzes do altar
do vento um sopro vehemente.
Como a planta sem frescor,
e como a luz do ar balida,
morres afogada em vida,
morres á mingua d'amor.
Mulher, nâo tens culpa; eu sei
que foi sina do meu berço .
perder-me, em anciãs immerso
de mil sonhadas quimeras:
sonhei-te qual tu não eras;
busquei-te... não te encontrei...
foi minha a culpa, mulher !
As rosas que tu me deras
vi-as murchar e morrer...
eu bem sei o que são flores t
As falias que me disseras
porque as havia de eu crer
mais que de banaes amores ?
Tu Dão tens culpa das dores
que ando a padecer na vida ,
l
145
dês que te vi; não tens, não !
as minhas penas, querida,
devo-as... ao meu coração.
Ver-te e amar-te em doce enleio
era uma religião,
de que me deste o baptismo:
o Deus, era o teu amor;
teu seio d'almo candor,
era o vaso d'eleição,
em que o fogo do heroísmo
ardia em vasto clarão.
Cheguei vacillante e só
á meza da communhão...
mas a hóstia, o sacro pão,
amargava a scepticismo !...
o Deus dissipou-se em pó f ...
o altar tornou-se balcão !...
caí do templo no abysmo t
Eu quiz o teu amor como um conforto.
No pélago das mil tribulações
serias galvanismo d'este morto,
que boiava á mercê sobre baldões;
e nas horas de dor e d'afflicção
nunca o teu nome invocaria em vão.
146
Eu qniz o teu amor para meu guia
nos caminhos da vida que eu não sei...
cegou-me o teu olhar; fugiu-me o dia;
e após, da minha mão, a mão que amei !
e nas penas da minha escuridão
era o teu nome que invocava então.
Eu quiz o teu amor para a meus cantos
dar fé, calor, e vida, que não têm;
para ensinar-me á lyra o riso e os prantos,
os fogos da paixão e os ais também;
e, quando a Deus pedia a inspiração,
era o teu nome que invocava então.
Eu quiz o teu amor como um sacrário,
onde eu fugir pudesse á minha dor.
Doía-me o rigor do meu fadário ?
ia buscar allivio em teu amor:
pois, quando me expulsava a ingratidão,
era ao teu seio que eu voava então !
147
Fallo, e nao me ouve ninguém I
eis-me assentado sósinho
junto á beira d' um caminho
que nâo sei onde conduz !
pobre mendigo d'amores,
sem pão, sem agua, sem luz !...
Não tens culpa ! eu bem conheço
que fado nasceu commigo !
De ti sei... que és meiga e pura !..
Deus te dê tanta ventura
quanta me fugiu comtigo !...
Parada de Gonta, julho de 1854.
ti
\}
OS SONHOS DO ESCRAVO BRANCO
(fragmento)
AO MEU PARTICULAR AMTGO
JÚLIO CÉSAR DE FARIA COUTINHO E CASTRO
AUTOR DO DRAMA
«ANTÓNIO O ENGAJADO»
Nas soidões do novo mundo,
além das virgens florestas,
onde o paiz não tem sombras,
nem o trabalho tem sestas,
junto aos sulcos fecundantes
das plantações d'uma roça,
dormia um branco algemado
no centro d'immunda choça.
150
Fugiu por matar saudades:
cortou-lhe os membros o açoite;
em prantos gastara o dia,
em visões passava a noite.
Por entre os fundos gemidos
escutae-Ihe as amarguras...
(inda o pincel da ironia
a desenhar-lhe venturas \):
— «A pátria, os irmãos, a esposa,
todos chamando por mim !...
Se vissem como é formosa
esta terra... este jardim !...
v«
C *
Bem vejo o triste colmado
a reclamar-me d 'além...
e o lenço branco ensopado
co'os prantos de minha mãe !...
151
Como hei de ás praias amadas
voltar da pátria gentil,
se tenho as mãos carregadas
co 9 as riquezas do Brasil t...
Oh t se elles d'além, das aguas
vissem meus áureos grilhões,
não mais curtiriam maguas
dentro de seus corações !...
Mataram-me estes algozes...
mas que o não saibam meus pães !...»•
Perdeu-se o resto das vozes
entre gemidos e ais.
Vigore-se o trabalho ao sol da liberdade !
pereça a escravatura, opprobrio das nações !
morra-se de fadiga... é lei da humanidade !
mas nunca acceite um livre açoites, nem grilhões !
Brasil, terra d'irmaos ! aqui no mundo velho
fugiu de nossas leis a condição servil 1
Tu que és do novo mundo o sol, o guia, o espelho..,
és muito grande já... pois sê maior, Brasil !...
Lisboa, 3 d'abril de 1863.
\
ESTERILIDADE
(NO ÁLBUM DA EXM.* SNR. a D. MARIA LEONOR DE CASTILHO)
Chego, após tanta demora
em te pagar o meu preito,
cançado, triste, e desfeito,
á tua porta, senhora.
E' tão crua a sorte minha
que, após um anno d'espera,
trago o teu cofre qual era...
só rico do que já tinha.
154
Nâo sabes cfUanto consome
os campos o inverno enxuto?..,
não colhi flores, nem fruto...
foi mesmo um anno de fome t
Na primavera inda os gomos
dos meus arbustos sem seiva
pediram á sêcca leiva
sustento para os seus pomos;
mas veiu o abrazado estio
trazer-lhe' affrontosa morte,
completando d'esta sorte
as gentilezas do frio t
Tens tantos dons, és tao nobre*
que certo bas de ter piedade
de tanta esterilidade,
do teu rendeiro tão pobre.
Esp'rando em annos futuros
mais formosa primavera,
venho hoje pedir-te espera
do capitai e dos juros.
Lisboa 14 de fevereiro de 1853.
AS NOVAS CONQUISTAS
(OFF. ÁS CLASSES OPERARIAS DE PORTUGAL)
As nobrezas. <routr'ora sâo da historia,
que em lettras (Toiro illustra acções de guerra.
Correram tempos; transformou-se a gloria:
mais vai que a luz do incêndio, a que illumina;
mais faz que espada ou lança, escopro e serra;
mais que mil arsenaes, uma officina.
156
Hoje é o trabalho o campo da batalha;
a industria faz plantão, fachina, e guarda;
soldado e general é quem trabalha;
é mais condecorado o que mais faz;
é-lhe bandeira, a sciencia; a blusa, farda;
e santo e senha — diligencia e paz.
Não condemno o que foi; canto o que vejo
dar lustre ao meu paiz, e á minha edade:
respeito a gloria antiga, nâo n-a invejo,
que me não vale os bens que ora contemplo
surdir (fentre o labor da humanidade.
Tem fastos nobres o presente!
Exemplo:
Tinha acabado a festa; e eu vim sósinho
escutando os conceitos dos convivas
que saiam, como eu, do templo civico
tão rico de lições.
Fora a festa brilhante: enlevo d'olhos,
as mulheres e as rosas;
enlevo d'alma, as oblações saudosas
a dois grandes varões,
157
filhos e astros da pátria em que nasceram,
que viveram por ella, e que lhe deram
almas, braços, palavra, e corações;
exemplo a registrar, a paga á vista
d'uma divida santa ao varão forte
que emprega a vida em arrancar á morte
o naufrago que anceia entre os baldoes
das ondas procellosas.
A esmola ao pobre; o refrigério ás dores;
os prémios ás fadigas do operário;
e, como para esmalte ao santuário,
as graças da mulher, musica, e flores.
Á porta baixa de modesto albergue
o que escutei é bem que oiçais também;
são sinceras palavras d'um artista
fallando a sua mãe:
— «Eis-me I cheguei, velhinha I acceita o meu diploma,
premio do meu trabalho, honra de minha mãe !
O meu formoso quadro I... hei de envial-o a Roma t
e o diploma na arca, oh ! guarda-o, guarda-o bem I
e quando algum visinho, um d'esses preguiçosos
que choram noite e dia o alheio galardão,
vier fallar de mim com olhos invejosos,
6 desdenhar do artista ennobrecido, então
158
tira-o do fundo da arca, e aponta-lhe o meu nome f
que leia, que decore as frases de louvor !
e dize-lhe, ateando a inveja que o consome:
—Vede ! meu filho é isto í e vós que sois, senhor?...»
— «Deixa abraçar-te, meu filho l
meu pequeno artista t vae
seguindo sempre esse trilho
que te ensinara teu pae.
Teu pae, sim, que te abençoa
d'além da campa onde jaz;
do reino, onde a eterna c'rôa
florece em perpetua paz.
Conta-me, filho, o que viste
nessa festa que eu não vi;
e que tudo quanto é triste
fuja bem longe d'aqui.» —
E a mãe beijava-lhe a testa,
e o filho abraçava a mãe I
Era o epilogo da festa;
olhos profanos não o vêm.
m
— «Mãe: imagina um templo armado em grande gala,
entre modesto e rico, entre oíficina e sala;
altar, sem supedaneo, ou cruz, ou sobreceos,
onde o trabalho só tenha o logar de Deus;
flores, luzes, orchestra, enchendo o santuário;
e pontífice— o puro, o fervido operário;
entre o opulento e o pobre, os homens do saber;
entre o ministro e o par, as graças da mulher.
Abi tens o templo.
Agora o que lá foi d'encanto
já sei que vais ouvil-o, ó mãe, banhada em pranto,
que os extasis traduz d' um grande coração 1
Qual em sagrado altar, no topo do salão
ba três retratos, três, em três molduras d'oiro,
e cada um d'elles, mãe, vale o melhor thesoiro.
Os nomes ouve agora, e vê que a minha voz
treme de os proferir, mesmo de sós a sós I
Se isto não é o assombro ante os clarões da gloria,
desça da base a estatua ! acabe o preito á historia !
Não ! não 1 que o sinto aqui no coração fiel t
Um d'elles (curvo a fronte) é Passos Manoel !
dos liberaes sem mancha exemplo e incitamento;
o que do povo ouviu lamento por lamento,
e a cada pranto novo abria o coração.
Teve dos seus o amor; não quiz mais galardão.
160
Modesto e bom viveu; morreu honrado e pobre.
Que nome tão singelo ! e que alma grande e nobre !
O coração, a vida, a paz, tudo elle deu
á pátria, á liberdade, a tudo que foi seu !
O outro... era... o amigo... o pae dos opprimidos...
Quero dizer-lhe o nome, e abafam-m'o os gemidos t
Esse tribuno invicto, essa inspirada voz,
que era o terror, o encanto, o amor de todos nós !
Sabes ? quem não conhece esse orador sublime ?
o abrigo da virtude? o raio contra o crime? I
Era impossível, mãe, quando elle ia a passar,
ver-nos sem nos sorrir, vel-o sem o saudar.
Anima va-se a pátria em elle erguendo o braço f
media d'um só vôo as amplidões do espaço I...
Parece-me ainda vel-o, o augusto campeão,
cheio de fé e espYança o altivo coração
em que do amor da pátria o sacro incêndio lavra f
Gigante da tribuna t artista da palavra f
Corôa-lhe um fulgor sublime, divinal,
a fronte mais gentil que teve Portugal !
Falia ?... prendeu-nos já I somos do seu encanto;
choramos entre o rir; rimos por entre o pranto;
fulmina, e implora, manda... ás vezes sem fallar;
que tudo falia n'elle; o rosto, o gesto o olhar t
Nas lidas do trabalho andou a sua enxada;
e nas da liberdade, a voz, a penna, a espada.
Se um déspota assomar... Tu choras, minha mãe?
o morto deixa a campa ! Oh ! vem ! juro que vem f
161
Chora... por elle não: foi-lhe madrinha a gloria;
e pantheon a campa, e apotheose a historia.
Chora, porque lhe é grato o preito funeral;
chora por ti, por mim... por este Portugal l
Ao pé de taes varões, á sombra d'esta gloria,
quem podes tu suppor que estava ali ? que historia
te parece condigna á historia d'estes dois,
que desse um companheiro ás sombras dos heroes ?
Um navegante audaz, temido em toda a parte,
que fosse além do oceano erguer nosso estandarte?...
um sábio conselheiro?... um general, talvez,
que desse fama e lustre ao nome portuguez?...
Mas se elle é tão modesto, e o nome é tão singelo !
Se fosse Gama, ou Castro, ou Pinto, ou Souza, ouMello!...
se, á mingua d'appel!ido illustre, fosse... par,
conde, barão, ou duque... emfim um titular I...
se, ao menos, do thesoiro houvesse um bom salário !...
mas é plebeu e pobre o triste do operário I...
Eu disse— do operário? achei-lhe a profissão !
nisto se cifra idéa, e braço, e coração.
Seu nome vou dizer I roubal-o a ingrato olvido.
Joaquim Lopes I... vês tu? nem mais um appellido!
Defronte do retrato estava o original.
Votar a gloria em vida é raro em Portugal ;
pois fez-se ali I Por Deus I consola que aos artistas
coubesse o posto d'honra á frente de conquistas
que hão de livrar do opprobrio a historia das nações,
livrando da miséria os Miltons e os Camões.
162
O velho estava ali, ao pé da sua gloria !
eníre os seus bons irmãos, ante o sorrir da historia.
Mas d'este honrado velho a grande acção qual é?
porque teve honras taes ? Queres saber porquê ?
Pergunta aos vagalhões do oceano revoltoso
se elle tremeu jamais ante o seu ronco iroso;
se os filhos com seu choro, a esposa com seus ais,
com seu escuro a noite, o raio, os vendavaes,
fizeram trepidar o velho ante o presagio,
as lutas, o clamor, as anciãs d'um naufrágio.
Mal que do mar á praia assoma um ai de dor,
na salvadora barca o homem salvador
lá corre sobranceiro, ao horror do cataclismo
salvando a vaga e vaga abysmo sobre abysmo I
o corpo sem vigor, que a onda ia tragar,
encontra um braço e um lenho, e sobre a praia um lar.
Ganhou (que os traz ao peito) hábitos e medalhas,
nunca matando irmãos, mas a rasgar mortalhas t
Olha a distancia, ó mãe, que vai de heroe a heroe:
um mata, outro dá vida; um salva, outro destroe.
Que é do que em prol d'irmãos a sua vida emprega ?
ninguém na turba o vê I pois se a justiça é cega l
Ao filho, pois, do povo, o povo ennobreceu;
mais que reaes mercês o povo ao povo deu.
Quando orares aos pés do celestial monarcha,
roga-lhe ampare sempre o remador e a barca t
163
Era a noite para as glorias
do homem que lida e sua,
co'a fronte curvada e nua,
noite e dia em seu mister;
para artistas e operários,
de cujas mil ofQcinas
surdem criações divinas
que o mundo pasma de ver.
Ali, pois, houve seu premio
todo o esmerado trabalho,
que a serra, o tear, o malho,
buril, escopro, ou pincel,
mandou á cidade heróica;
lidei por elle, ganhei-o;
inda guardas no teu seio
o documento fiel.
Escuta o final: — A' America,
senhora d'além dos mares,
terra dos virgens palmares,
e dos virgens corações,
levou seu facho a discórdia
com seu cortejo d'horrores,
e sobre frutos e flores
jorra o sangue em borbotões*
12
164
Lambem as línguas do incêndio
villas, plantações, e roças,
e dos casaes e das choças
foge o colono infeliz.
Deixa a aldeia pelo exercito t
a lida pelas batalhas I
o sulco pelas muralhas !.*.
E assim se mata um paiz !...
Perde a canna o humor dulcíssimo;
seu doce fruto, o coqueiro;
e o modesto cafeeiro
perde o seu próvido grão;
o ananaz, a pinha opípara;
a bananeira, os seus cachos;
perde os seus alvos pennachos
o humanitário algodão I
O algodão, que da indigência
era a barata limpeza I
o aceio de leito e meza 1
roupa, mortalha, enxoval!
O algodão, que a tanto artífice
dava o pio quotidiano,
eil-o extincto além do oceano t
eil-o extincto em Portugal t
165
Andam por isso operários
nas vastas praças do Porto,
sem trabalho e sem conforto,
a mendigar o seu pão !...
Mãe, deixa correr as lagrimas,
porque o pranto a dor acalma (
Isto ennegrece a nossa alma !
Isto parte o coração t
Já vês que á festa, que a gloria
deu para exemplo á cidade,
veiu meiga a caridade
erguer as sagradas mãos.
Ninguém lhe negou seu óbolo t
Entre artistas como é nobre
a esmola de pobre a pobre !
soccorro d'irmãos a irmãos t
A' porta da sala esplendida,
Ai, mãi I como isto consola t
ia dar... a grande esmola t
do parco dinheiro meu,
e duas donzeilas cândidas,
tão lindas como os amores,
trocaram-m'o todo a flores,
que têm aromas do ceo.
JL66_
Toma-as; põe-n-as no oratório
aos pés da Virgem Maria,
e has de ver quanta alegria,
o bento ramo nos dá.
Nas horas das tuas maguas
conchega-as ao peito, aquece-as;
a caridade conhece-as,
e a Deus por nós pedirá !» —
E a mãe beijava-lhe a testa,
e o filho abraçava a mãe !
Era o epilogo da festa;
olhos profanos não o vêm.
Àhi tendes loiros d'hoje ! as ultimas conquistas
d'um povo culto e bom não têm outro brazão.
Pede o trabalho a c'rôa ao templo dos artistas
para a levar, submisso, ao templo da nação.
Olhae pelo presente, idolatras da historia !
deixae o cemitério I ao berço vos chegae !
pelos cuidados de hoje haveis riqueza e gloria;
é bom filho o trabalho a quem souber ser pae.
Parada de Gonta, 9 d'outubro de 1863.
FOGE!
(num álbum)
Lisboa é como o abysmo: espanta, prende, e mata;
fascina, attrai, algema, o eterno borborinho !...
Feliz, oh I bem feliz, o que o grilhão desata,
e pôde ainda fugir buscando o pátrio ninho t
Circumda-a flórea relva, aromas, oiro e. cantos,
palácios, e jardins; no centro, o antro, o inferno*
profundo, cavernoso, a vomitar espantos,
onde o prazer se esvai ante o lamento eterno.
168
Ave da brenha alpestre, ao ledo canto esquiva,
fadada já por Deus para cantar só maguas,
cruzei o espaço azul buscando uma luz viva
que vi lá da montanha a dardejar nas aguas.
Yoei... r voei... a luz crescia no horisonte I...
— «Adeus, gratas canções I adeus, soidão celeste !...»
Era já longe o extremo alcantilado monte,
onde ha mato florido, onde ha perfume agreste.
Aqui, o plaino infindo; aqui, o mar immenso;
aqui, o hymno altivo em vez da humilde prece;
além, ar transparente; aqui, profano incenso,
<jue torna fusca a luz, que embriaga, que endoidece-
Cheguei; pairei; desci; poisei n T esta voragem,
que rouba o amor do seio, a candidez das almas I
crestou-me a chamma a branca, a mórbida plumagem;
poisei sobre um pragal onde sonhava palmas i
169
Tudo perdi !... 'té mesmo o raio d'alegria
que em triste coração no intimo sacrário
arde escondido e só, como da campa fria
nas fendas nasce e cresce um goivo solitário,
por fim se me apagou !... Tudo perdi, senhora !
Troquei, pela do incêndio, a luz da primavera.
Volto bem outro ávida, ao meu paiz d'outr'ora,
mais pobre do que vim, mais triste do que eu era.
(V pomba, foge ! foge ! Este murmúrio eterno
aturde e abafa a voz da pátria tão querida;
mas não leves, como eu, saudades, d'este inferno,
onde me fica... morta uma porção da vida !...
FAÇO IDÉA
(num álbum)
— «A proprietária do livro
que te aqui deixo, Thomaz,
é minha amiga; e verás
que não tem nada de feia.» —
— «Façoidéa.» —
~«E' Beatriz!» —
— «O nome é lindo I»
— «E o corpo ? airoso e gentil I...
e aquelle nobre perfil I...
e a fronte que o orgulho alteia 1...» —
— «Faço ideal» —
172
— «E vai fugir-nos, poeta !..,
cançada já de festins,
troca os salões por jardins,
a capital pela aldeia !...»—
— «Façoidéa.» —
— «Não fazes idéa I enganas-te !
não pôde haver fantasia
que sonhe inteira a magia
de que Beatriz se rodeia!» —
— «Façoidéa 1!» —
— «Ai fazes ?i.. pois nesse caso
descrê ve-a assim — tal e qual.» —
— «Mas... sem veF o original ?{...»■
— «Amigo, não se arreceia
quem faz idéa!» —
O meu amigo, senhora,
que a verdade não falseia,
fez assim vosso elogio,
e eu fiquei... fazendo idéa !
Lisboa, 3 de junho de 1862.
A JUDIA
RECITADA
PELA ACTRIZ EMÍLIA ADELAIDE PIMENTEL
HO THEATRO DE D. MARIA II, EM A NOITE DO SEU BENEFICIO)
Corria branda a noite; o Tejo era sereno;
a riba, silenciosa; a viração, subtil;
a laa, em pleno azul erguia o rosto ameno;
no ceo, inteira paz; na terra, pleno abril.
Tardo rumor longínquo; airoso barco ao largo
bordava áureo listrao do Tejo ao manto azul;
cedia a natureza ao celestial lethargo;
traziam meigos sons as virações do sul.
174
O' noites de Lisboa ! ó noites de poesia I
auras cheias cTaroma f esplendido luar !
vastos jardins em flor ! suavíssima harmonia I
transparente, profundo, infindo, o ceo e o mar !..,
Se a triste da judia ousasse ter desejo
de pátria sobre a terra, aqui prendera o seu:
um bosque sobre a praia, um barco sobre o Tejo>
e eleito da minh'alma um coração só meu I...
Corria branda a noite; immersa em funda magua
fui assentar-me triste e só no meu jardim;
ouvi um canto ameno ! e um barco ao lume d'agua
vogava brandamente. A voz dizia assim:
— «Dormes ? e eu velo, seductora imagem,
grata miragem que no ermo vi;
dorme — Impossível — que encontrei na vida t
dorme, querida, que eu descanto aqui !
175
Dorme I eu descanto a acalentar-te os sonhos,
virgens, risonhos, que te vem dos ceos !
dorme ! e nâo vejas o martyrio, as maguas,
que eu digo ás aguas, e nâo conto a Deus !
Anjo sem pátria, branca fada errante,
perto ou distante que de mim tu vás,
ha de seguir-te uma saudade infinda,
hebréa linda, que dormindo estás !
Onde nasceste ? onde brincaste, ó bella?
rosa singela que não tens jardim?
Em Jafa ? em Malta? em Nazareth ? no Egypto ?...
mundo infinito, e tu sem berço ?! oh ! sim,
folha que o vento da fortuna impelle I
victima imbelle que um tufão roubou !
flor que num vaso se alimenta, crece,
ri, desparece, e nunca mais voltou !
Filha d'um povo perseguido e nobre,
que ao mundo encobre o seu martyrio, e crê t
sempre Ashevero a percorrer a esfera !
desgraça austera I inabalável fé !
176
porque bade o lume de teus olhos bellos
mostrar-me anhelos definito ardor?
porque esta chamma a consumir-me o seio?..-
Deus de permeio nos maldiz o amor !...
Peito ! meu peito, porque anceias tanto?
pranto! meu pranto, basta já, não mais f
é sina, é sina I remador, voltemos;
não n-a acordemos... paraqué, meus ais?...
Dorme, que eu velo, seductora imagem,
grata miragem que no ermo vi;
dorme— Impossível— que encontrei na vidai
dorme, querida, que eu não volto aqui !»—
Sumiu-se abarca, e eu chorava
debruçada sobre o Tejo;
a aragem trouxe-me um beijo
que nos meus lábios tomei...
ergui-me cheia d'affecto;
vi scintiliar inda a esteira
da barquinha feiticeira,
e disse ás auras:— «Correi !
177
trazei-m'o ! quero contar-lhe
o fundo tormento enorme
da judia que não dorme
a penar d 1 ignoto amor !
voae f trazei-me o seu nome,
o seu retrato, o seu canto,
uma baga do seu pranto...
que venha ! o meu trovador !...
Ai, não I que ha na minha historia
que lhe suavise a tristeza?
Nasci na triste Veneza,
onde perdi minha mãe;
acalentaram-me lagrimas
que derramava a saudade,
na desgraçada cidade
que não tem pátria também. (*)
Cresci; meu pai uma noite
disse-me: — «É já tempo agora;
ergue -te ao romper d'aurora,
vamos partir amanhã;
vamos ver as terras santas,
sepulcros de teus monarchas;
a pátria dos patriarchas,
desde o Egypto a Chanaan.» —
(*) A data da poesia explica «ate verso.
178
Fui; corri o mappa immenso
das montanhas da Judeia;
ai, pátria da raça hebréa !
ai, desditosa Sião !
que extensos montes sem relva 1
que paragens sem conforto !
onde se estende o Mar-Morto,
e onde serpeia o Jordão !...
Aqui, de Hemor os vestígios;
de Ziphe, além o deserto;
longe, o Sinai encoberto;
d'Horeb o morro, inda além;
d'este lado, o Mar- Vermelho;
d'aquelle... nada I uns destroços:
ruinas, campas sem ossos !
e, ao fundo, Jerusalém 1
Meu pae chorava, e eu chorava,
vendo morta e sem prestigio,
terra de tanto prodígio,
maldita agora de Deus.
Tudo silencioso ( estéril !
tudo vastos cemitérios
onde ruinas d'imperios
ficaram por mausoleos !
179
—«Meu paè— disse eu— tenho sede !»
— «Vê, filha, a aridez do monte !
só Deus dava ao ermo a fonte
em que bebia Ismael.» —
— «Pae, cancei; mostra-me a pátria,
quero dormir sem receio...» —
— «Filha, encosta-te ao meu seio,
que não tem pátria Israel.» —
Em todo o mundo estrangeira f
toda a vida peregrina !
Vede se ha mais triste sina:
ser rica, e não ter um lar I
Sempre a lenda do Ashevero !
sempre o decreto divino !
sempre a expulsar-me o destino,
como Abrahão á pobre Agar !
13
180
Que pôde valer á hebréa
sentir n'alma chamma infinda?
como a iinda Ester ser linda,
e amada como Rachel ?
Se o coração da judia
se entre-abre do amor aos lumes»
não lhe dá tempo aos perfumes"
o seu destino cruel.
Ai, trovador nazareno
não voltes ( tenho receio...
Dizes que é Deus de permeio ?
não ! blasphemaste ! Deus, não t
Poz o mundo esse impossível
entre o desejo e a ventura;
o amor chama-lhe — loucura;
e o preconceito — razão.
Deus é Deus, e um só existe !
cego é o mundo, e varia a crença l
mas esta cúpula immensa
é tecto de todos nós t
este ambiente que respiro,
da lua e do sol os brilhos,
hão de ser de nossos filhos t
foram de nossos avós !
181
Mas se a crença nos separa,
e o mundo exige o supplicio,
dê-se o amor em sacrifício,
deixando-se o pranto á dor;
eu, cerro o peito á ventura;
tu, esmaga o teu desejo;
não mais virei junto ao Tejo...
não voltes mais, trovador í
Lisboa, abril de 1864.
TÂNTALO
(num álbum
Sabeis quem era Tântalo? O coitado,
por mais que fez, não poude entrar no ceo:
foi ás penas eternas condemnado !,
e tão grave castigo mereceu...
não sei por que peccado...
por glotão ! que sei eu ?
184
Tanto comeu, tanto bebeu, que o eterno
Jove, cançado ao serio com tal méco,
o condemnou, com todo o amor paterno,
a perpetua abstinência ! E magro, e peco,
lá vive no inferno
a enguiir em secco.
Vê pomos junto aos lábios, mas não come;
vive mettido n'agua, e o seu frescor
não lhe mitiga a sede que o consome:
foge-lhe o fruto e a fonte; e neste horror
morre de sede e fome !...
Ha Tantalos d'amor t
Lisboa, 13 de junho de 1864.
UM CANTO DA PUERÍCIA
•(RECITADO POR UM DOS ALUMNOS DO COLLEGIO DE S. PEDRO D^LCANTARA
NA FESTA DO SEU PRIMEIRO ANNIVEBSARIO)
Salve, augusto anniversario !
Finda um anno... (Erguei as mãos !)
dês que entrámos no sanctuario
da nova fé, meus irmãos 1
Gratidão á caridade !
ao mestre as bênçãos dos ceos !
paz e bens á humanidade I
honra aos nossos I gloria a Deus !
186
£' findo um armo ! a innocencia
deve-lhe preito d'amor:
foi na manhã da existência
o nosso primeiro alvor;
foi quem abriu nossos olhos,
e o leite d'alma nos deu;
fez-se a luz ! trevas e abrolhos
a caridade os varreu !
A primavera tem hymnos,
relvas, flores, fogo, e luz !
Os pobres e os pequeninos
amava-os muito Jesus !
De Deus foi seguido o exemplo;
folgar, meninos, folgar,
que, após as festas do templo,
ri-se a escola, as mães, e o lar t
Somos de plantas mimosas
esperançoso embrião;
amanhã virão as rosas;
depois, os frutos virão.
187
Co'os velhos a caridade
só no ceo seus prémios tem;
mas, se abriga a nossa idade,
acha-os na terra também.
Que pois d'esp'ranças bemditas !
faça Deus homens por fim,
e que as hervas parasitas
fujam do nosso jardim I
Se o manto da caridade
tão santo abrigo nos dá;
se o sol da eterna verdade,
seus raios nos manda já, —
abramos os olhos d'alma
a tâo vividos clarões:
a pátria tem muita palma
á espera de bons varões.
A escola é próvido ninho;
a escola é templo d'amor:
dão-lhe luz, vida, e carinho,
a pátria, as mães, o Senhor.
188
E do nosso asylo a historia
que nobreza tem ! sabei
que foi sagrado á memoria
d'um grande e chorado rei.
Chorado como até agora
nenhum foi neste paiz !
ai t porque nunca uma aurora
se ergueu com tanto matiz !...
Seu nome... nem a saudade
m'o deixa aqui repetir I
Vós o sabeis, que a orfandade
soube-o amar, sabe-o carpir I
Sabem-n-o: o artista, o poeta,
os sábios, os seus iguaes,
a officina, a choça infecta,
e os leitos dos hospitaes ;
a piedade, que na esmola
que dá, mostra a sua dor;
sabe-o mais que tudo a escola,
que lhe deveu tanto amor t...
189
Por isso, ó cândidas almas,
sempre o seu nome louvae t
ficam tão bem entre as palmas
as saudades por um pael...
A vida, após a memoria !
após a saudade, o amor !
sobre uma gloria, outra gloria t
sobre a cruz, um resplendor I
Novo monarcha ergue o braço;
chovem dons da regia mão;
e um real augusto abraço
nos conchega ao coração t
Pois que o passado saudoso
do ceo nos olha e sorri;
pois què o presente esp'rançoso
nos protege e ampara aqui,
190
desdobrem-se os tenros gomos
das plantas que hâo de florir t
Fé, e espYança, irmãos, que somos
operários do porvir !
Cubramos d'osculos puros
santa mão que nos conduz t
Agora... peito aos futuros,
e caminhar para a luz !
Lisboa 29 de junho de 1863.
BEM-VINDA
(por occasiâo do consorcio de suas magestades fidelíssimas
O SENHOR D. LUIZ E A SENHORA D. MARIA DE SABOYA)
Bem-vinda ao nosso Tejo, ó triunfal bandeira t
íris da bella Itália t astro de muita espYança !
segues do nosso rei a augusta companheira t
Dissipe-se a tormenta aos risos da bonança t
Emflm respire a grey ! levante um hyrano era coro
de bênçãos, cTalegria, após o immenso luto t
aos pés do throno em gala, inverta em riso o choro
inteiro o coração ! É justo esse tributo.
492
Tu não sabes, rainha?... o peito era opprimido
(Tanciar por esta pátria, a quem queremos tanto f
Ao ver chegar tão só, pallido, compungido,
o rei junto do thrpno, a disfarçar seu pranto,
pedimos muito, muito, ao martyr do Calvário
que lhe arrancasse da alma essa amargura infinda !
Foi Deus que te mandou, pomba do santuário !...
Vens consolal-o emfim I Bem-vinda I oh ! sê bem-vinda f
Se no teu berço augusto a paz è combatida,
se os hórridos vulcões têm flammas na cratera,
a causa do opprimido a Deus é commettida !
Confia no juiz, acalma a dor,— espera !
A vasta nau da Itália abriu todas as velas
sem medo ao pego fundo e ao turbilhão que freme.
Tem, a mostrar-lhe o porto, ou iris, ou estreitas t
a liberdade, á proa 1 a lealdade, ao leme !
E se inda irado mar em torno ao teu palácio
brama aos duros tufões da Áustria e á'Aspromontt t
em breve um sopro do alto ha de limpar do Lacto
a escuma da tormenta, as nuvens do horisonte !
193
E tu no emtanto a nós, ó pomba espavorida,
acolhe-te, da paz formosa mensageira !
n^arca de nosso peito has de encontrar guarida;
nos braços d'este povo— os ramos da oliveira !
Terás na lusa praia as ribas italianas;
sole que diz— fartura, e ceo que diz — bonança;
searas da Sicília; auras napolitanas;
e flores de Saboya em prados de Bragança !
Terás do povo o amor, que te foi dado inteiro
mal que a paterna mão de nós te confiara;
o braço, o coração de D. Luiz Primeiro,
e as bênçãos que te guarda o martyr de Novara.
Senhora, pois que vens a semear venturas
no campo que inda enxuga os prantos da saudade,
rainha, ajuda o rei a ter-nos bem seguras
a paz, a independência, a honra, a liberdade !
194
E nós, cheios cfamor e d' alegria infinda,
iremos supplicar ao Martyr do Calvário J
haja de transformar á que nos foi bem-vida
a pátria num altar, o sólio num sacrário t
A HORTÊNSIA
O pobre cão... De que vos rides, bellas ?
affecto por affecto... Olhae que é cega
e surda a taboada t e não vos toma
em conta essas estrellas
de vividos carbúnculos
que em vossas frontes de marfim scintillam,
nem o suave aroma
e o mel que se distillam
do entre-aberto raminho d'essa bocca
de jasmins e rainunculos I .
ti
496
Affecto por affecto... ha mais e ha menos;
e sobretudo o enthusiasmo, a ardência,
que scintilla, trasborda, e se derrama
em gotas d'affectuosa effervescencia,
é mais de vós, humanas divindades.
Mas os brandos carinhos ? e os serenos
affectos das profundas amizades ?
a branda, casta chamma,
que, em vez d'expandir-se, entra
no peito, e aquece, e dura;
affecto que, saudoso e paciente,
se conchega, se aninha, e se concentra,
e faz morrer um ente
sobre uma sepultura...
pôde sentil-o assim o pobre câo I
e, exposto ao sol e á chuva,
velar o ultimo somno
e a ingrata solidão
da campa de seu dono,
chorando... mais viuvo... que a viuva!...
Ganta-se a pomba — a casta mensageira,
a rolinha viuva, e o rouxinol
cantor das solidões*
a andorinha das ruas— forasteira
crioula a baloiçar-se entre os festões
e as messes das ferazes estações
preza aos raios do sol,
e o mocho— o mais cruel
197
de quantos feiticeiros-
vem aturdir o mundo
com pios agoireiros,
e hei de calar do amigo mais fiel
o puro, o immenso amor,
terno, constante, bom, cego, profundo ?.,
Hei de cantar-te, Azor t
Chora-o, sim, formosa Hortênsia,
que os teus olhos por chorosos
não ficam menos formosos.
Custa muito a eterna ausência
de quem nos amou na Tida,
que é sem remédio essa dor !
Chora, sim, chora, querida;
perdeste um servo e um amor!
Mostrava tanta saudade
quando acaso te não via f...
Que delirios d'amizade t
quando afagavas, tremia í
quando eras triste, gemia!
cantavas... endoidecia!
£ quando, em cruéis momentos-,
de ti o lançavas fora,
J
198
com que penas e lamentos
o pobre Azor se carpia I...
Chora, bella Hortênsia, chora !
Também eu tenho gravada
no meu peito a mesma dor,
lembrando a immensa alegria
com que elle, quando eu subia,
vinha saudar-me na escada
como um prenuncio d ? amor I
Que pena me faz agora
entrar onde já não mora,
Hortênsia, o festivo Azor t
Sou como o pobre faminto
que as tremulas mãos estende
á bem-vinda, escassa esmola:
todo o carinho me prende !
todo o affecto me consola 1
199
Gomo tu eras querido,
meu pobre amigo t que amor
que tu, morrendo, abandonas f
quanto affecto estremecido,
e quanta saudade, Azor,
nas almas das tuas donas,
no peito do teu senhor I
Um dia, a formosa Hortênsia,
da morte prevendo o insulto,
tirou-te o retrato, e a tela
com surprendente eloquência
te mostra vivo e presente;
e no olhar intelligente
inda nos pedes um culto
de saudade para a ausência f
Foste bem feliz, amigo I
que te deu propicia sorte,
na vida — tão doce abrigo,
tantas saudades na morte.
Não morreste I não te esquivas
ao amor que nos inflamma !
quiz o pincel da tua ama
que, inda além da morte, vivas f...
Se teve o cão do Louvre trovadores,
guarde o nome d' Azar grata a amizade;
ta deste-lhe na tda eternas cores,
eu dou-lhe no meu canto uma saudade.
Lisboa, 1867.
ANNIVERSÀRIO
(Á EXM.» BNTV.» D. MARIA AMÁLIA TAZ DE CARVALHO)
I
Eis seu dia de festa f eil-a ditosa,
flor a desabrochar entre delicias t
Paes» amigos, cercae-a de caricias t
Aves, é primavera I a rosa ! a rosa !
Surgiu, desabrochou entre montados !
F vossa irmã, sabeis ? comvosco mora;
se cantais, canta, ao pôr do sol e á aurora;
se voais, voeja, entre os jardins e os prados.
202
Yós a ensinastes a cantar tão cedo
num tom suave o festival gorgeio
que ao ceo nos leva; e (Tesse ignoto enleio
é vosso, é d'ella, o divinal segredo !
Celestes virações, descei 1 beijae-a !
que eu sei como vos ama e vos decora
os carmes que, ao primeiro alvor da aurora,
passando murmurais á flor da olaia.
Rústicas notas de canção singela,
sylphos que volitais entre as balseiras,
fragrâncias das festivas laranjeiras,
é hoje o dia anniversario d'ella !
Saudae-a todos vós ! vede-a ditosa,
flor a desabrochar entre delicias !
Paes, amigos, cercae-a de caricias 1
E' vinda a primavera ! a rosa I a rosa !
203
II
Vê, senhora: entre os convivas
(Teste jubiloso dia
só prazer, vida, alegria,
respira, falia, transluz 1...
Como é que eu, triste e enlutado,
canto em festiva linguagem ?
a tão alegre romagem
que devoção me conduz ?
Canto a recordar as horas
que passei a vosso lado !
lembro um sonho namorado
que teve um triste acordar !
traz-me aqui uma lembrança,
que falia em cantos e flores !...
Ai, maga mansão cTamores,
faz'-me esquecer o meu lar !
£04
Longe, longe esta tristeza 1
prazer, por meãs lábios falia I
ha brindes, e festa, e gala !
ha juventude, ha viver I
ha poesia, ha formosura,
que a chamma do seio ateia I
já meu estro se incendeia !
ao prazer 1 eia ! ao prazer I
Brindo á musa (Testes bosques !
brindo ao seu estro divino !
brindo ao prospero destino
que Deus conceda ao seu lar t
a seus pães ! á irmã formosa,
coração de fina essência !
á familia, providencia
dos povos d'este logar !
Quinta de Pinteus, 2 de fevereiro de 1866.
ENTRE FLORES
(NO ÁLBUM DA EXM.' SNR.* D. MARIA DA ASSUMPÇÃO DE PODENTES)
Imagina, senhora,
uma casinha branca entre arvoredos;
um lago junto d'ella;
junto ao lago um jardim.
A' porta da morada encantadora,
uma hastea d'hera a entretecer um arco,
e a enrolar-se nos vimes d'um jasmim.
No jasmineiro, um ninho;
206
uns ovinhos lá dentro, e os ternos medos
com que os guarda amorosa filomela.
Dentro do lago, um barco;
e nelle uma donzella
d'olhos humedecidos e formosos*,
grandes, azues, profundos como o espaço;
cabello ondeado e solto;
collo de cysne; o corpo esbelto e airoso;
lyra d'oiro poisando-lhe no braço;
um veo de gaze em ondas mil revolto
por .sobre a azul roupagem:
como aérea visão que se evapora
quando o poeta enamorado acorda
ao sentido vibrar d' intima corda,
ou névoa matinal velando a aurora.
E emquanto de seus lábios melindrosos
fogem suaves, indistinctas maguas,
e timida suspira,
sua elegante e seductora imagem
a reflectir-se no cristal das aguas,
e a segredar-lhe uns magos sons a lyra !...
Serranias gigantes
erguendo-se nevadas e arrogantes
na extrema do horisonte,
e do outro lado o mar t
207
Com murmurinho manso, incerto vago,
a poética lympha d'uma fonte
desce furtiva, e a medo
se escoa e cai dos musgos d' um rochedo
a tintilar no lago !
Modifique-se o tom do quadro ameno:
A luz do sol desmaia;
repinta-se d'azul o mar e o ceo;
os roseiraes redobram de perfumes;
d'anhelitos frementes a floresta;
crepitam na amplidão tímidos lumes t
Na molle copa da tufada olaia
acorda um rouxinol em cada arranca,
e um raio de luar que além se ergueu
bate de chapa na casinha branca !
Ó bella, escuta agora
os sons que vem das aguas !
Que toada encantadora I...
Diz alegria, ou maguas ?...
A voz, ora se alegra, ora se enluta I
Minguem sabe se canta, ou se suspira,
a branca fada que dedilha a lyra 1...
Escuta!... escuta!...
208
— «É posto o sol ! horas do casto enleio,
velae meu seio em que trasborda amor f
Minh'alma, accende a veladora chamma !
Expande-te, ama, solitária flor !
Dedilho a lyra, e pranto a flux me brota f
e em cada nota se me enreda um ai !
astros, sorri-me I áureo luar fulgura !
lago, murmura ! rouxinoes, cantae t
É bella a vida entre canções e flores f
Sombra e fulgores têm o valle e os ceos;
hymnos, o bosque; a madre-silva, incenso;
concerto immenso do infinito a Deus 1
Mas d'onde vem esta tristeza suave
ao canto da ave, ao scismador luar ?
ao bosque, ao valle, ao ceo, á choça, ao monte,
ao lago, á fonte, ao gemebundo mar ?
D'onde este arfar? d'onde este vagaaneeio
na aura, no seio, e no tremer da flor ?
é pena, e ri ! quando é prazer suspira !
dize-me, ólyra, é tudo isto...» —
209
— «Amor!»
lhe respondeu voz ignota.
Ella estremeceu de pejo,
e abafou a ultima nota
nos sons d'um tremulo harpejo.
Se te agrada esta paizagem,
se achas o quadro risonho,
dá-te por finda a romagem.
Tens a verdade bem perto,
mas vale mais o teu sonho.
Já viste, ó virgem, de certo,
co'a luz do teu alto espirito,
que tracei de fantasia,*
e co'as tintas descoradas
da minha obscura palheta,
o bosquejo da poesia;
faltou... pintar-te o poeta í
Na casa que tanto alveja
vive o pobre; mas lá dentro,
210
onde o seu génio se expande,
não vás, que é mansão de dores I
Bem sabes ! tudo que é grande
tem por fora alvura e flores...
mas... ai! que abysmos no centro t...
Deixo incompleto o meu quadro.
O fundo é todo funéreo I
Só te mostro as galas do adro,
mas fecho-te o cemitério !
Lisboa, 31 de maio de 1866.
NUM ÁLBUM
Folha, quando te arrancares)
some-te no espaço immenso !
rasga-te por esses ares !
que podem julgar-te incenso
que arde em profanos altares.
Vês ? e tu, pura de vícios,
toda alvura e claridade,
vens pela mão da amizade
ao altar dos sacrifícios,
15
212
onde é pontífice o amor;
e onde tu, hóstia incruenta,
só és clarão que aviventa
as graças de muita flor t
Eu bem sei que a poesia
perdeu seu manto de luz,
que altiva arrastava outr'ora;
traz hoje a fronte sombria;
é triste, a nobre senhora;
mas, mda triste, seduz !
E eu quero-lhe mais assim,
que é mais da minha orfandade t
A minha flor é a saudade.
A rosa, o cravo, o jasmim,
são mais enfeites e incenso
para profanos altares.
Folha, quando te arrancares,
perde-te no espaço immenso !
Estoril, 24 de junho de 1867.
ZARA
CONTO DE MOIRAS ENCANTADAS
(A eliza)
I
Quando menino... e já lá vão bem annos t
em noites de janeiro, ao pé do lar,
contavam-me as cachopas e os serranos
contos que me faziam já scismar !
Umas vezes entravam na aventura
frades... Deus lhes perdoe, que já lá vão !..
outras, casquilhos, mas... de miniatura I
e pães, que tinham forças de Roldão !
214
e homens de pés de cabra, e umas princezas
mui secias e tafues saindo sós
pelos bosques, montanhas, e devezas,
deixando adormecer aias e avós,
e uns estudantes de mau sestro e manhas,
e uma fantasma branca, e um bicho, e um rei,
e umas fadas gentis... tudo patranhas
que de cór aprendi... que inda hoje sei!...
Por isso, quando o mundo anda mais tonto,
e mais revolto vejo o temporal,
eu folheio a memoria, e acho num conto
proveitosos preceitos de moral.
Queres ouvir, senhora? Agora mesmo,
em vez de te escrever cantos d'amor,
vou-te deixar aqui um conto... a esmo f
Seja... A Moira encantada! Este é melhor !
Contou-m'o uma velhinha: era tao bella,
com seus crespos cabellos de marfim !...
Tal qual t'o vou contar, contava-o ella !
E e eu pasmado a escutar !... Dizia assim:
215
II
— «Houve um tempo em que a moirisma
calcou terreno christão,
e foi Jesus insultado
pelos crentes do Alkorão !
Jamais um crente islamita
se descobriu ante o altar f
rosto fero, alfange em punho,
era só roubar, matar t...
Queimavam corpos humanos
ao lume da santa cruz !
faziam carvão dos santos,
e das reliquias !... Jesus !...
Tanto sangue derramaram
aquelles monstros sem fé,
que Deus tinha preparados
destinos d'outro Noé !
216
Os astros mostravam sangue
em toda a amplidão dos ceos,
como sentença de morte
com sangue escripta por Deus í
A lua, lago sereno !
o sol, um mar a ferver !
prantos de sangue, as estrellas t
e a terra em sangue a gemer I
Eram de sangue as cidades !
de sangue, o templo, o altar f
de sangue, as fontes da selva !
de sangue, as ondas do mar t
de sangue, os frutos do campo !
de sangue, a flor do jardim f...»
Eu rezei um Padre-nosso;
benzeu-se ella, e disse assim:
217
III
— «Junto das caras tisnadas
d'esses tigres orientaes,
viam-se as moiras, tão lindas,
tão distinctas de seus pães !...
O sol deu-lhes lume aos olhos,
e aos rostos meigo rubor !
Ai I se fossem baptisadas,
eram anjos do Senhor!...
Que nobres frontes altivas I
que breve, que lisa mão !
e os seus meneios de cobra f
e os collos... que perfeição !
e dos cabellos pendentes
que soltos, longos anneis !...
mas dizem que eram de fogo
seus corações infiéis !...
218
IV
Chega o dia desejado
da celeste punição,
e o incêndio das mesquitas
purgou o templo christão !
Reapparece a cruz, erguida
sobre o crescente f Lá vão
d'Agar os filhos fugindo,
e as moiras... nem todas ! não f
— Parae ! — lhes disse o destino.
Tentaram fugir... em vão f
— Vivei!... — e vivem ! mas hoja
onde vivem ? onde estão ? I
Solitárias, encantadas
dos montes na solidão,
são como flores caídas
d'ingrata, pérfida mão I
219
Fez-lhes eterno um conjuro
o bater do coração;
deu-lhes perpetua lindeza
nâo sei que mago condão !..
Hoje vivem... Ninguém sabe
se as tristes vivem, se não !
têm risos... mas não têm prantos t
têm sentir... não têm paixão !
aspiram... não têm desejos !
tudo ali é vago e vão !
são como aéreos fantasmas
passando em louca visão I
Tu nunca viste o rochedo
que tem o signo samão,
e a fonte que lhe resalta
dentro da gruta em cachão ?
Uma ali mostra o seu oiro,
que não tem cruz de christão,
nas primeiras alvoradas
da manhã de S. João.
220
Eu vi-a ! É Zara o seu nome !
os dentes pérolas são;
e tinha os olhos pisados
de ler no seu Alkorão.
Se um dia a vires, meu filho,
que nunca te chegue a mão...
ou rouba-te os santos óleos,
e deixas de ser christâo !
E ali te passarão séculos,
tal como ella, espYando em vão,
pobre florinha esquecida
dos montes na solidão f...» —
Senhora, o conto innocente,
como a velhinha o contou,
tenho agora bem presente
a impressão que me deixou t
221
Como eu mirava o rochedo,
o meu conto a recordar!...
Mas, ai I que medo, que medo,
eu tinha de lá passar !
Ver a moirinha encantada,
ver o seu meigo sorrir,
escutar-lhe a voz maguada,
era o meu gosto, e fugir I
Se ante mim se abrisse o abysmo,
ia-me ali despenhar !
que a moira tem magnetismo...
e podia-me encantar !
VI
Hoje as moiras baptisadas
têm um condão mais fatal I
Vivem tão desencaptadas t
e encantam... por nosso mal !
222
Já não são flores do monte:
têm cidades por jardim,
reinam em largo horisonte,
e têm vassallos sem fim !...
Pois dae-Ibes em vassallagem
o rendido coração !
tributae-lhes homenagem !
escravizae-vos ! eu, não !
Nem mesmo sendo, valido
em tempos d'eterna paz f ...
É templo sem base erguido
que um só capricho desfaz !
Quero a mulher minha, Eiiza f
singela... vaidade é pó!
que tenha amor por divisa,
e, por yassallos, eu só !...
1854.
YAE, MAS VOLTA!
(no álbum da exm.* snr.* d. m. do g. da s. mendes)
No coraç5o affectos;
saudades na memoria;
nisto se cifra a vida 1
Artista, vae, querida,
que avassallaste as almas !
Para te dar mais palmas
aqui te espera a gloriai
Lisboa, junho de 1866.
A FOLHA VERDE
(reminiscências do carnaval)
Quem sabe se foste a causa
de me eu perder, folha verde ?
Verde symbolisa esprança^
e co'a espYança que sorri
quanta gente se não perde ?
É verde o mar em bonança,
e esconde abysmos em si,
muita tromba d'aguaceiro,
muita syrte, e muito damno.
Talvez... talvez, folha verde,
que eu vinha por ti absorto !...
O certo é que me perdi,
e, desnorteado barqueiro,
entregando á sorte a proa»
226
fiz-me ao largo a todo o pano,
mar em fora de Lisboa,
na ré deixando o meu porto !...
A folha da japoneira
teria acaso feitiço ?
seria de feiticeira
a mão que m'a deu ?... Por isso..
Mas nada ! não foi ! não é !
A mão era bem bonita,
que a tive eu nas minhas mãos;
e juro por minha fé
que os dedos eram christãos !
Só se a luva... Emfim, não sei,
e o que sei não se acredita !
Corri cem ruas desertas !
caminhos que nunca andei I
nem um clarão nas janellas,
um passo, uma voz,— ninguém !
só muito ao longe as alertas
das nocturnas sentinellas f
E eu vagando aqui e além
sçm dar pelo meu desvio I...
Quando mais scismo, acontece
que vou no meu desvario
a andar... por andar ! á tôa !
e um ermo até se me antolha
a rumorosa Lisboa 1
227
Mas, á saída do baile,
em quê, em que scismei eu?!..
Em nada I a não ser... na folha
que a mascarada me deu !...
Pois inda vos não disse ? o baile era de mascaras !
era a folia infrene, o doido carnaval !
tropel em turbilhão de sonhos mil fantásticos,
o vasto auri-luzente abysmo festival !
Paiz febricitante, onde se enflora em júbilos
a imagem do prazer ! grinaldas e festões f
ondas d'acre fragrância ! ondas de luz prismática !
ephemero anciar d'ephemeras paixões !
Um mundo multicor ! um multiforme vórtice !
onde remanda á vida, a um'hora de prazer,
um ente, cada povo; um traje, cada século:
sombras que vem folgar, sorrir, desparecer !...
Era a odalisca ardente, e o requeimado egypcio 1
era a varina altiva, e a grega sua irmã !
e a Norma enamorada, e a filha do Adriático t
e a vivandeira audaz, e a fada alva e louçã !
16
228
À esplendida romana, e a camponeza ingénua,
d'olhos de tanto amor e lábios tão de mel !
e o Tasso, e a saloínha a requebrar-se languida !
e um grande á Henrique oitavo, e um nobre á D. Manoel t
e a scismadora noite, e a feiticeira bohemia !
e a intrépida escosseza, e o rude calabrez !
e o cavalleiro negro, e a branca flor de Nápoles f
e a larga espora d'oiro, e o morrião, e o arnez !
e a dama de Luiz treze, e o pensativo arménio t
e o lesto gondoleiro, e o recamado emir !
e a salerosa nina, a tentação de Málaga !
e a fascinante bebrea, a pérola d'Ophir i
e a dança, a dança infrene ! e o delirar da musica !
e o revoltoso prisma a remoinhar sem fim I
festão aberto e esparso a dardejar relâmpagos f
fragrâncias d'um salão, delírios d'um jardim !
Prazer e febre em tudo ! Era um correr eléctrico
de frémitos d'amor ! d'anceios de prazer !
um desejar sem fim ! sopravam filtros lúbricos—
no aroma, cada flor; no rir, cada mulher !
229
Mas quem eram duas mascaras,
entre tanta garridice,
cujos nomes ninguém disse,
cujos rostos ninguém viu ?!
— «Lindas fadas são !»— dizia-se;
que, apezar de tão veladas,
que eram bellas e eram fadas,
quem não sentiu ?
E o salão, curioso e férvido,
a agrupar-se em torno d'ellas !
que a luz viva das estreitas
mais encanta e mais seduz
quando vem coada e tímida !
e era a seda ténues flocos,
nuvens raras, para focos
de tanta luz !
Era ouvil-as, e no espirito
conceber visões suaves ;
sonhar cantos, flores, aves,
riso, amores, ceos, e bouris !
Flores bellas e fantásticas
quando a mão tenta colhel-as,
mal se inclina para ellas...
fogem subtis !
230
E assim fugiram céleres
os Dominós*azues,
tristes deixando, e extáticos,
as bellas e os tafues,
como fugaz relâmpago
que fulge e se escondeu !
Ficou-me... a folha trémula,
que uma, o meu par, me deu !
Aqui prende e acaba a historia
da folha verde e das bellas !
Se alguém quizer conhecel-as,
eu posso dar-lhe signaes:
têm ambas loiros cabellos,
frontes vastas; estaturas,
sem serem grandes, esbeltas;
olhos garços, vivos, bellos;
pés e mãos... de miniaturas!
Eis o que vi; nias sei mais
231
outro signal que as indica:
se alguém puder escutal-as,
note como em suas falias
se ameniza e dulcifica
o som das lettras mais duras !..<
Não sei se a língua indiscreta
disse mais do que devera !
Ao clarão da primavera
sorri a lyra ao poeta,
enflora-se, e reverbera !...
Venha cá, folha travessa !
como tem brincos fataes,
não quero que me endoideça:
commigo não anda mais !
Se alguém disser que a graça é só da França,
levae-m'0 aos meus travessos Dominós;
que este desdém do seu, esta esquivança,
é cá d'uns francezinhos... cTentre nós !
Lisboa, 6 de março de 1867.
A BORBOLETA
Á EXM. a SNR. a D. SYMI PHILLIPS
(no seu álbum)
Eu conheço-a ! oh, se a conheço !
sempre volitando anciosa,
esbelta, fugaz, airosa,
esquiva, amante, esquecida,
eterno enigma na vida !...
Eu conheço-a ! oh, se a conheço !
Estimoa; estimal-a é grato;
quero entendel-a... endoideço !
234
Paira a mirar-se na fonte;
bate as azinhas subtis,
desce ao prado, sobe ao monte,
requesta, endoidece as flores...
e engeita-as ! Procura a chamma,
illude-a, foge !... Não ama !
Deixae-a fingir amores !
são tudo anceios febris !
Eu conheço-a ! oh, se a conheço !
Dizem as flores do monte:
— «Sabeis porque ella nos foge ?
somos serranas e pobres !
ella é fidalga e vaidosa !
lá quer amores mais nobres !
A lisongeira da fonte
mostrou-lhe o espelho e prendeu-a
só com dizer-lhe:— És formosa !» —
Diz a fonte co'um suspiro:
— «Vão lá fiar-se das bellas !
Eu tão pura em meu retiro,
e tão recatada e amante;
eu, que regeito ás estrellas
o amor que em seus raios leio;
eu, que lhe disse anhelante:
—Desce ! bebe do meu seio
235
todo o néctar peregrino ! —
pobre de mim í que fiz eu ?!
julgou -me lodosa e ensossa !..
Só liba néctar divino,
gotas do orvalho do ceo !» —
E diz a gota do orvalho:
— «Desci, desci toda a noite
para a ver na madrugada;
foi bera pago o meu trabalho !:
sorriu-me, e passou I mais nada f
EUa quer lá gotas d'agua
trémula, fria, incolor ?!
quer lume, incêndios ! (e é magua !)
quer chammas vivas no amor !» —
— «Porque me foge a inconstante
—murmura trémula a chamma—
será que um delirio amante
a attrai ao regato?., ás flores?...
carinhos de maior preço?...
cores de novo matiz !...»—
Nada ! nada ! Eu sei: não ama !
Deixae-a fingir amores !
são tudo anceios febris !
Eu conheço-a ! oh, se a conheço.
236
Enganam-se o orvalho e a fonte»
a chamma e as flores do monte.
E' varia como os matizes
das suas azas doiradas;
não pode lançar raízes:
quer liberdade sem meta;
ir sem saber onde vá;
timbra de ser borboleta !
não ba prendel-a ! não ha !
Não ha?... Quem sabe? Os segredos
das formosas mais esquivas
tem românticos enredos
que o mundo nem sempre vê.
Pelos caminhos da vida
o amor sabe armar uns laços,
e ás vezes... prende-se um pé...
depois.,, prende-se a cintura...
luta-se... e prendem-se os braços...
e eis rendida a formosura !
A flor, essa, d'innocente,
ama, deseja... mais nada;
apenas sente... que sentei
não sabe fazer-se amada !
Mas a chamma, que é ladina,
á formosa, que a requesta,
237
e a afaga co'a ponta da aza,
rouba a innocencia divina:
co'o fogo as azas lhe cresta;
com beijos de fogo a abraza !.
Nada ! eu volto á minha idéa !
esta borboleta é intrépida,
nâo teme laços, nem cbamma,
nem ba paixão que a submetta !
Se a amarem, sorri sem dó !
se finge amores, não ama,
que o juro aqui ! vende só
desdéns por subido preço !
Ha de morrer borboleta...
Eu conbeço-a ! ob, se a conbeço !...
Lisboa, 21 de março de 1866.
NO ÁLBUM D'ARTHUR NAPOLEÃO
(na Véspera da sua partida para o brazil)
Teu nome é teu horóscopo:
Arthur que diz ? Poesia;
Napoleão? Conquista.
Adeus, homem fatídico !
Vae, vencedor artista,
poeta da harmonia !
Lisboa, junho de 1866.
OS CEGOS
(versos recitados no theatro do príncipe real,
em presença dos cegos da casa pu,
na noite do seu beneficio)
Vede ! ceguinhos !... Nenhum (Telles pôde
yev, entre a doce luz que esplende aqui,
tanta bondosa mão que lhes acode,
tanto rosto de bem que lhes sorri !...
Sempre a tristeza, com seu duro açoite,
a cortar-lhes, maldita ! os corações !
sempre a caliginosa, immensa noite
a enlutar-lhes tremendas solidões !...
242
Sentir em torno o estrondear do mundo,
sentir a festa, a vida, o turbilhão,
e o tenebroso cárcere profundo
a cobril-os d'eterna escuridão !...
Sabeis o que é desdita, e as dores sevas
da agonia sem luz, d'ancias cruéis ?
Este espelho reflecte o horror das trevas !..,
Ai ! vós destes-lhe' esmola, é que o sabeis !
Trevas ! trevas ! o horror da tumba em vida !
campa chumbada entre a existência e a luz !
via-sacra nocturna, erma, comprida !
passos mal firmes sob a enorme cruz !...
E vivem, e sonham almas
sob estes craneos-clausuras !
e nestas, mansões escuras
quer Deus que floresçam palmas !
e que os ecos das venturas
243
achem ecos de saudade
dentro d'alma ao pobre cego !
e que lhe seja conchego
o calor da caridade !
Deus é grande f e em cada ser,
quer gigante, quer insecto,
ou seja cego ou vidente,
planta uma dor, e um affecto,
co'um raio do seu poder,
<#'iima palavra clemente !
Para curar cada magua,
põe o seu amor profundo
entre as mãos da caridade
quem faz cada átomo um mundo,
e retrata a ittimensidade
na mínima gota d'agua f
Em cada luzente insecto
de Deus scintilla um vestígio !
em cada ser incompleto
se cumpre mais um prodígio !...
17
244
Nos cárceres que em torno a mim contemplo
julgais que as pobres almas escondidas,
chorosas com seu luto, esmorecidas,
nao terão para orar íntimo templo ?
Se a abobada é sombria, ha luz no centro,
onde cálida prece o peito exhala;
nas janellas, se a luz bate e resvala,
accendem-se os sacrários lá por dentro f
Servem d'altares cinerarias tumbas;
o amor pede mysterio onde se acoite:
festas a Deus também por alta noite
celebravam christãos nas catacumbas.
Passa a abobada ingente, funda, espessa,
de Deus o ouvido, e a débil prece escuta;
do mundo os antros seu olhar perscruta,
e as camadas opacas atravessa.
E nem por escondida a humilde prece
que nas azas do amor ao ceo se eleva,
menos condão, menos virtude leva,
ou se perde, ou se peja, ou se arrefece I
245
No temporal desfeito, ou no socego
da calmaria, em tudo é Deus ! em tudo I
no coro universal, na alma do mudo,
na luz do sol, e nas visões do cego !
Onde houver Deus ha luz, amor, e festa;
que a sua graça em raios se disparte;
no mínimo, e no immenso ! em toda a parte
a festa do infinito um Deus attesta.
Animo, irmãos sem luz ! Bemdito o pobre f
bemdito o que tem fome e o que tem sede f
bemdita a flebil voz que chora e pede !
bemdita a mão que dá, levanta, e cobre !
Bemdita a virgem que, do triste albergue
onde chora a miséria, a dor espanca;
e co'a bondosa mão, pequena e branca,
cruzes pezadas aos seus hombros ergue I
Bemdita a caridade, o amplexo, o laço,
que prende e envida á communhão dos seres;
synthese dos amores e deveres;
entre os homens e Deus fraterno abraço !
246
Tudo do mundo a mão de Deus compensa:
o pobre é rico de fervente prece,
e de bênçãos d'amor com que agradece;
e o rico, de venturas que dispensa.
Embora ao cego a escuridão esmague,
embora o seu altar só tenha cruzes,
lá lhes pôde accender intimas luzes,
sem que o vento de fora lh'as apague I
O cego vê f : outros quadros,
noutro mundo mais feliz;
outros jardins e outros adros,
com flores d'outro matiz;
outros templos e castellos,
mármores d'outro lavor,
criptas, zimbórios mais bellos,
e soes de mais esplendor !
O cego vê ! : mundos novos
repletos d'amor e fé;
casas brancas, jovens povos,
onde tudo canta e vê !
Í47'
Pelas paragens distantes
do espaço, que é o mundo seu,
vai... nas ilhas fluctuantes,
pelos oceanos do ceo,
como era tapete encantado,
em cadeira de condão,
correr seu mundo, assentado,
e a sabor da viração !
Se ouve um canto, vê na mente
formosuras e jardins;
se escuta um órgão plangente,
virgens, gloria, cherubins 1
Se de jasmins ou violetas
cheira os aromas subtis,
vê nuvens de borboletas,
frescura, arroios, matiz !
Se mão pequena e macia
se achegar aos lábios seus,
na inflammada fantasia
vê primaveras e ceos !
248
Sente, e a faísca resalta !
pensa, e o templo se accendeu !
íris as trevas lhe esmalta,
e nellas um mundo e um ceo;
caprichos, sonhos, chimeras,
absurdo, enganos fetaes,
tempestuosas primaveras,
auri-roseos temporaes I
Mas se um só dia se abriram
olhos onde o mundo entrou,
e após, sobre olhos que viram,
fulminea chamma passou,
todo o quadro do universo
fica da alma na viuvez,
e as notas do hymno disperso
lá cantando t E quanta vez
dentro do cárcere austero
trabalha um génio immortal ? 1
que o digam Milton e Homero.,
póde-o dizer Portugal !
r
249
Mais que dos lábios a prece
quer Deus a do coração,
mais o amor brota e florece
nas trevas da solidão !...
Sabeis neste momento o que lá vai nas almas
dos pobres que não têm a esmola d'um fulgor ?
Ergue-se um templo grande; e nelie o incenso e as palmas
escutam prece humilde, e cânticos d'amor !
Luz trémula de prisma o templo sobredoira;
uns braços fazem throno; um seio ardente, altar;
sobre elle a caridade, alva, risonha, loira !
virgem que vem... do ceo I rosa que vem... do mar !
De pérolas se veste, aljôfares, e riso;
põe bálsamos d 1 amor nas chagas do infeliz;
tem azas; são de luz ! recende a paraíso;
consola, dá... sumiu-se 1 e o nome seu não diz 1
2S0
E o cego ali se prostra em acto de humildade,
e poisa aos pés do altar inteiro o coração !
Yós que hoje os soccorreis, vós sois a caridade !
elles, a prece humilde, e a immensa gratidão !...
Disse-vos que o cego via
quadros de muito primor;
sim ! co'a luz da fantasia,
que faz o engano maior !
Se achardes cegos, senhores,
na turba, ou nas solidões,
dae-lhes a mão, bemfeitores,
que não vêm, não 1: têm visões !
Caldas da Felgueira, 5 de novembro' de .1866,
O PENEDO DA MEDITAÇÃO
„-"->■*
Pobre rochedo ! sósinho,
tão distante da cidade t...
só do susurro dos montes,
do rumorejar das fontes,
da branda relva do prado,
das franjas dos horisontes,
tu queres ser contemplado ?...
252
— Meditação !... — Como é grande
esse teu nome, rochedo !
Ai 1 como entende este nome
quem ama e chora em segredo !
Sombrio I impassível I mudo 1
esperas acaso alguém ?
gigante inerte ! comtudo
tu choras 1... porquê?... por quem?...
Do monte cortado a pique
porque, assentado na altura,
espreitas tão debruçado,
firme, attento, fascinado,
o seio aberto do prado
que te ha de dar sepultura?...
Bem vês, victima da sorte,
que, por fatal magnetismo,
tu, pendurado no abysmo,
lá tens d'encontrar a morte !...
253
Do meu soffrer resignado
és eloquente memoria !
és o padrão mutilado
da minha truncada historia!
és !... não vão muito distantes
momentos em que a seu lado,
a mim e a Deus o jurei,
nos poucos, breves instantes
que, n'esta pedra sentado,
junto d'ella meditei !
Tu, queres por companheiros
só estes cerros tão tristes !
da queda que ha de matar-te
vês a distancia, e persistes?!...
Eu, doestes áridos montes
onde tanto amor senti,
só quero a triste saudade !
que as lindezas da cidade
recordam-me o que eu perdi!...
25á
Ai de mim ! perdido o tino;
prendeu-me um cego destino:
sei que me vou despenhar !
bem perto chammeja o incêndio...
debalde bradais: — Detende-o ! —
e sei que me hei de abrazar !
aos pés me negreja o abysmo,
e, por fatal magnetismo,
hei de lhe a altura salvar t
Ai ! n'esses breves instantes
Que juncto d'ella scismei,
que d'epopeias gigantes
concebi, se as não cantei I
E ella, volitando sempre,
no monte, no vai, nas flores,
do ceo na amplidão immensa t
e amei-a, quando sorria,
como a luz cT ultima crença,
que mata se tem um fim t...
e ella linda, linda... e fria
como a estatua da indiffrença
vinha poisar junto a mim I...
2S5
Perdi-me ! é tarde ! se eu esperasse ao menos
dias serenos d'um viver feliz !...
mas nunca !... ai, rosas, em que eu leio amores,
pendidas flores que não têm matiz !
Rochedo, ao menos, ao viçoso prado,
onde encantado o teu olhar ficou,
mandas o pranto que te inunda o peito,
ultimo preito de quem muito amou !
Mas eu, forçado a segredar sósinho
n'este caminho de miséria e dôr,
num rir forçado, onde o ninguém presume,
escondo o lume d'infinito amor !...
Alma, não deixes d' acolher constante
clarão distante da longinqua luz t
que, se ficares sem a imagem d'ella,
erma capella, que te resta ?... a cruz 1...
256
Foge, foge, pensamento,
das trevas d'esta amargura !
que após o negro tormento
virá talvez a loucura !
vejo-lhe o vulto !... é medonho I
oiço-lhe o rir !... faz tremer !
tem o andar pesado e lento !
fujamos, ó pensamento t
não quero louco morrer !...
Coimbra, 1855.
TRISTE !...
(NO ÁLBUM DA EXM." SNR.' D. RACHEL NAZARETH)
Na mão, donzella, descançando tímida
pallida fronte pensativa e triste,
porque desejas, num sorriso languido,
matar lembranças do que já sentiste ?t
Morre o sorriso como a sombra ténue !
resalta á face o que no peito existe !
258
Mulher, sê triste! que do mundo o riso
é falso aviso t a falsa dita envida t
Não tens um riso que te valha um pranto,
bálsamo santo nos papeeis da vida !
Cinge-te a fronte divinal, mimosa,
pura, saudosa, pensativa, linda,
de roxas flores funeral diadema,
sentido emblema de tristeza infinda !
Guarda-o t é transumpto de cruel memoria (
luto da gloria a que, a sonhar, sorriste !
Não queiras risos que te mintam festas,
prendas funestas !... Ai, mulher, sê triste !..,
Quando pairar o teu olhar suspenso
no espaço immenso que te argenta a lua,
saúda os fogos da mansão d'archanjos t
Paços dos anjos são a pátria tua í
E dize ao mundo, que te foi desterro:
—Árido cerro, onde a flor definha !
lego-te o pranto que me inunda os olhos,
pátria d'abrolhos, que não és a minha t...
259
i
Rachel, sê triste ! No mundo
tem magia o padecer t
riso aqui, o mais jucundo,
insulta, ou mente, mulher t
Dizem que é forte a desgraça
que em sorriso os prantos muda !...
onde estão ingénuos peitos
que o triste sorriso illuda ?
E o rosto o peito espedaça
com seus risos contrafeitos 1
Ài t o prazer simulado t...
Rachel, teu riso é forçado !
regeita-o, que vem mentir !...
Se me pudesses ouvir !...
eu contava-te o que vi
num'hora em que estava triste t...
Poi hontem... foi ! não me ouviste ?
Pois olha ! chamei por ti !
Dentro da igreja vetusta
carpia, solemne, augusta,
cio órgão santo a triste voz;
em carmes irmãos do choro,
18
260
das virgens cantava o coro,
por si rogando... e por nós í
Entre esses etherèos cantor
dos olhos caiam prantos !
adivinhei-os ! que ali,
se não vi faces mirradas,
senti vozes abafadas !...
As portas eram fechadas,
mas eu escutei e ouvi.
Atravez de fenda escassa
as aras do templo vi;
luz amortecida e baça
incerta ondulava ali !
dava dentro ao santuário
esse clarão mortuário
uma só vela no altar t
cá fora, em manto alvacento,
caia sobre o convento
a triste luz do luar !
Eram da tristeza as festas
que celebrava o mosteiro,
com luz nas gothicas frestas,
com ecos no espaço inteiro !
E onde estavas tu, Rachel,
meiga, celeste visão ?
261
contemplavas o socego
das estrellas no Mondego,
e alguma pena cruel
contavas á solidão?
scismavas no paraíso ?
contrafazias um riso ?
matavas o coração ?!
Ai 1 se tu viras o quadro
d'aquella festa singela !...
Faltavam flores no adro:
tu és açucena, e és bella !
Sabes tanto da tristeza
os segredos e a linguagem !...
O templo, o canto, a deveza,
tudo retratava a imagem
do teu sentido \iver !
e eu quiz ver-te ali, mulher,
por te ver dos negros olhos
suave pranto correr,
e o luar suavemente
banhar-te a pallida tez...
que os raios do sol ardente
insultam apallidez !...
Triste, procura o mosteiro
de noite e á luz do luar !
longe ali do mundo inteiro...
só Deus vê... podes chorar !
262
Rachel, o canto que ouviste,
se não te agradar por triste,
perdoa ! inspiraste-o assim t
Triste sou eu de saudade,
d'esta risonha cidade...
que vou deixal-a por fim !
Porém de ti longe, ou perto,
na cidade, ou no deserto,
nas selvas, ou no jardim
hei de, em perpetua miragem,
ver-te a seduetora imagem
triste, a scismar junto a mim !
Coimbra, maio de 4855.
FIEL-0-MOLLOSSO
Eu quero muito aos cães ! pois nos carinhos
que lhes vejo nos olhos, se os afago,
ou, se lhes corro a mão pelos arminhos,
nos beijos que me dão, não fico eu pago
de todo o meu affecto ? Homens, é duro
comparar- vos aqui f mas o futuro...
(o presente e o passado assim o attestam)
o futuro, vereis, dá-me razão.
Estudados carinhos nada prestam;
tendes néscios desdéns, mordeis a mão
que vos ergueu do abysmo, e lambe-a o cão 1
264
E vós, meninos, que sereis um dia
amparo, benção, fruto a vossos pães,
como agora lhes sois flor e alegria,
ouvi a minha historia, e nunca mais
apedrejeis um cão ! nem persigais
com motejos, um pobre, um desgraçado,
um velho, um louco, um ébrio, um mutilado l
Deus espreita do ceo, vossa mãe chora,
e vosso pae castiga-vos. Agora
vou contar-vos a historia verdadeira
d'um câo que vale... uma familia inteira:
I
Era uma noite gelada,
noite do mez de janeiro;
pés de raro passageiro
soavam pela calçada;
e os varões do candieiro
rangiam sob a rajada
do vendaval do sud-oeste.
No cemitério não longe
carpia o feral cypreste,
açoitado pela chuva,
não sei que preces de monge,
265
ou que orações de viuva.
No fundo, o mar encrespado,
e a floresta dos navios,
turma despectros sombrios,
dormindo um somno agitado
nas febris, tremulas ondas.
Na cidade, a leve bulha
Nalguma tarda patrulha
fazendo as nocturnas rondas.
Era no bairro onde ha flores,
e bons ares, e trigaes;
onde ha primavera e aurora;
onde impossíveis d'amores
sonha a bella olhando os mares,
debruçada... scismadora
no seu florido mirante,
emquanto jorra delírios
em gorgeados madrigaes,
junto á enternecida amante,
um rouxinol entre lyrios.
Pois d'esse bairro apartado
na mais solitária rua,
vi, nessa chuvosa noite,
sem um tecto onde se acoite,
sem um lar onde se aqueça,
266
creancinha semi-nua,
sentada sobre o lagedo,
agasalhando co'um braço
uma nevada cabeça
em cima do seu regaço;
do outro lado, attento e quedo,
um cão lhe prestava encosto,
e as frias mãos lhe lambia,
e bafejava-lhe o rosto.
Quem era a pequena dona
de tão caridoso braço ?
e o velho que ali jazia
sobre o seu molle regaço ?...
II
O velho fora um soldado,
duro como os bons arnezes;
de coragem que deu brado
contra hespanhoes e franceses.
267
Finda a guerra, ao solo grato
voltou, pendurou a espada ;
e era ver o Cincinato
entre o arado, o ancinho, a enxada.
Roubou-lhe um dia de casa
a esposa, a garra da morte !
e nos seus olhos em braza
sentiu lagrimas o forte !
Foi sentar-se á borda da eira
sem desprender um lamento;
mas, ai ! pela vez primeira
o heroe se viu sem alento !
Saiu de casa o valente
a espalhar a dor profunda...
topou co'um ébrio contente !...
Entrou na taverna immunda !
Bebeu, e sentiu quebrantos...
saudades... febre de guerra I...
bebeu mais, derramou prantos í
mais... mais... e caiu por terra i
268
De noite, a filha enlutada
entrou na mansão medonha,
e ao descer a immunda escada
disse-lhe: — «Pae, que vergonha !...»
— «Foram penas, Margarida !...
procuro, e não acho a morte !...
A velha era a minha vida !.,.» —
— «Pois que é isto?!.,, eu sou mais forte !
Sou viuva, e sigo avante !
Sou mulher, mas lido e ralho !» —
— «Fuzile-me, commandante,
que eu... desertei do trabalho.» —
— «Pois nunca mais...» — «Dito e feito !» —
— «Jesus...» — «Filha, e os meus pesares?!.
Vou fazer saltar o peito
como um paiol pelos ares !» —
— «Mas, pae, as vossas medalhas
viram morrer muita gente !» —
— «Sim; mas não viram mortalhas !
morre fardado o valente !
269
Nem viram morrer mulheres
que nos dão a alma num beijo !...
Fui vencido hoje ! que queres ?...
mas fui-o por meu desejo.» —
£ entrando em casa o soldado
ajoelhava ao pé d'um berço,
beijava a neta, e calado
ficava em tristeza immerso.
£ nunca mais para a vida
fez esforço o heroe... o escravo !
e, ao ver a filha na lida,
dizia-lhe: — «Vá, meu bravo !
Mereces a gloria e os hymnos !
lida, mulher-maravilha !
sustenta os teus dois meninos,
eu e a neta... o pae e a filha !»-
£ cada noite o soldado
se amparava áquèlle braço;
e, se caía prostrado,
tinha por baixo um regaço.
270
III
Annos mais, e a filha cança
de carpir e de lidar:
cai, morre ! e no pobre lar
nao fica um resto d^spYança !
Fica a pequena Rachel,
a loira flor do cerrado;
o curvo inútil soldado;
e o bom rafeiro — o Fiel.
E as hortas murcham sem rega,
e as vides sem poda estão;
come o bolor o timão,
e a ferruge, a enxada e a sega.
Ao ver-se tao pobre e só,
o velho ia ser blasphemo !
mas, num impeto supremo
de vergonha, e brio, e dó,
271
trava da enxada o colosso...
a enxada cai-lhe, e elle diz:
— «Emquanto pude, não quiz f
agora... quero, e não posso !
Vae, neta I vae pedir pão,
já que trabalhar não podes !
Tu, velho, arranca os bigodes !
covarde, fraco, poltrão I
Volta á negregada vida !...
vae beber ! beber I beber f ...
Fui eu que te fiz morrer !
Margarida ! ai, Margarida !...
A velha era o meu amor t
a filha... o dever, o esforço !
a netinha é o meu remorso !...
Deus, manda um raio, Senhor !»
272
Sentada ao pé d'uma esquina
pedia esmola Rachel;
e o velho, magro Fiel
guardava a triste menina.
E cada noite o soldado
se amparava à um débil braço;
e, se caía prostrado,
tinha por baixo um regaço.
IV
Chega a estação negra e fria,
chega a inimiga dos pobres;
na igreja da freguezia
tange a campa !... e não são dobres.
não ! são repiques de festa !
são alegrias da igreja !
porque na sacra floresta
mais uma rosa viceja !
r
273
Porque a uma loira menina,
que estava pedindo esmola
todo o dia ao pé da esquina,
Deus a ouviu, Deus a consola !
Morreu ?... quem sabe dizel-o ?
vai deitadinha de costas)...
mas tem luzes no cabello !
mas inda leva as mãos postas !
Descorada vai... De certo !
se a côr sempre lhe foi pouca !...
mas leva um sorriso aberto í
e inda um bem haja na boca !
Lembra a flor que e vento corta
e lança á veia corrente:
ninguém sabe se vai morta,
se feliz, viva, e contente.
Pois repique a freguezia,
e na sagrada floresta
haja galas e alegria 1
na terra nem tudo é festa f
274
Lá deplora o dia inteiro
um velho a teimosa vida 1
e aqui, o fiel rafeiro,
rojando a cauda estendida,
segue á mansão derradeira,
onde a cruz falia ao cypreste,
a piedosa fogaceira
que leva a offrenda celeste !
Treme o lençol de cambraia
no taboleiro de neve !...
serão azas que ella ensaia? I...
por isso o anjinho é tão leve t
E o pobre cão vai pasmado !
qual na estação dos amores,
ave a quem levam roubado
seu ninho armado entre flores.
Olha cada passageirp,
fareja cada cr e anca,
mostra o fúnebre canteiro
como quem pede uma espVança !
275
E quando a terra lhe esconde
essa adorada cabeça,
foge... e nâo sabe por onde !
olha... e nâo acha a quem peça !
Uiva, gira e se lastima I...
cala... escarva... arqueja... clama I...
e vai lastrar-se-lhe em cima,
inda a escutar se ella o chama !
Tenta a pedra... e geme... e luta...
vai... volta... ulula... fareja...
pára, a indagar se ella escuta !
geme, a tentar que ella o veja !
Granizo a torrentes chove;
passa o dia, vem a noite !
o pobre cão não se move
por mais que o coveiro o açoite !
276
É noite, noite profunda,
noite nevoenta, pesada;
ouve-se uma voz pausada
dizer na taverna immunda:
— «Morreu; se eu sei que morreu í
ia bonita, mas só t
agora, o que me fez dó
foi ver o cao !... que o vi eu !...
atraz do taboleirinho,
todo a chorar ! se eu vi tudo !
pobre cão ! tâo magro, e mudo
por todo aquelle caminho !...» —
— «Se o velho n5o firma o pé,
quem no ha de agora amparar?...» —
— «Ouviste?... senti raspar!...» —
— «Onde?» — «Na porta !»— Quem é?...»
277
— «Oh ! não, não abras, António !
esta é a bora da creança !...
Rachel !... não veiu ! descança !
vae, vae-te ! (cruzes, demónio I)»-
— «Batem de novo !...»— «Quem vem?
não falia?... não entra cá t
não abras !»— «Abre !...» — «Pois vá !» —
— «Cruzes !...» — «Abrenuntio!» — «Amen.» —
Pasma a turba absorta agora !
um cão entra, olha, rasteja,
fita as orelhas, fareja...
dá volta, e sai porta fora !
Dir-lhe-ia a alma de Rachel:
Amigo, já que eu não vou
acompanhar meu avô,
tu vais buscal-o, Fiel?...
O cão foi achal-o ao lume.
Nunca mais veiu á taverna;
queimava-o em chamma interna
dor que mil dores resume !
278
Tanto essa pena o mirrou,
foi tão profunda essa dor,
tanto ardia esse amargor,
tanto e tanto, que cegou l
Cego, tomava a sacola;
prendia ao fiel mollosso
uma fitinha ao pescoço,
e ia assim pedindo esmola.
Quem deixaria de os ver
nessas ruas mendigar ?
o cão, tudo a acautelar;
o velho sempre a dizer:
— «Desertei do meu trabalho !...
agora... quero, e não posso !
esmola ao fiel mollosso,
que vale maia do que eu valho. »-
Fiel, mal que desce a noite,
corre inda hoje ao cemitério
dormir no leito funéreo
por mais que o coveiro o açoite.
Estoril, 28 de junho de 1867.
O HERMÍNIO
Serra, três vezes salve ! Assim te ergueste
negra em torno de nós, muralha enorme
d'uma Bastilha agigantada, informe,
horrenda, tenebrosa, olhando os ceos !
Salve, Estrella, colosso, que na Beira
o tempo ergueu K padrão d'altos destinos !
altar d'onde as tormentas mandam hymnos
nas azas dos tufões aos pés de Deus !
280
Eis-me teu prisioneiro ! o escuro inverno
o teu amante... o teu esposo, Estrella,
mal que os umbraes transpuz cTessa Portella,
cerrou atraz de mim negro portão.
Cingiu-te com seus braços de gigante;
cobriu-te com seu manto de chuveiros.
Eis-nos presos, meus tristes companheiros,
nesta lobrega enorme solidão !
Somente, como um raio d'esperança,
inefável promessa de conforto,
nos apparece aqui, nuncia d'um porto,
a capella da Virgem, erma e só I 4
alva, como os amitos da innocencia;
pura, como os murmúrios d'uma prece;
triste, como o chorar de quem padece;
meiga, como o fallar de quem tem dó !
Virgem, ouve-me tu ! Emquanto o vento
zune pelas quebradas, e os chuveiros
se arrastam pelos cumes dos oiteiros,
e as torrentes alagam cerro e vai;
emquanto a serra estremecendo arqueja
debaixo dos açoites da procella,
Virgem, escuta I ouve meu canto, Estrella,
e acompanhem-me os sons do vendaval.
Capella da Senhora da Assedaça.
281
Hontem, á meia noite, ergueu-se do occidente
um som rouco, e profundo, e prolongado, e ingente;
mais forte que o do mar, mais cavo que o trovão;
dera um gemido enorme a enorme solidão !
ouviu-o a serra inteira, e os ecos repetiram
promptos de monte em monte o cavo som que ouviram.
Dormíamos lá em baixo á extrema orla do vai
na choça de colmeiro; humillimo casal
onde raro se alberga... um cão, um pegureiro,
um lobo, um caçador, bandido, aventureiro,
que vai transpondo a serra e vé que a noite vem;
eis quem pernoita ali; mais nada; mais ninguém.
Dormíamos lá em baixo; os cães e os caçadores
deitados sobre a palha. Os últimos fulgores
de moribunda luz mostravam pelo chão
disperso o trem da caça: a bolça, o cinturão,
o torto polvorinho, as botas, o chumbeiro,
e armas em funeral. O tecto de colmeiro,
negríssimo do fumo. Ao fundo, inda no lar,
um cepo quasi extincto a ouvir-se crepitar.
Quadro para painéis, estudo para horrores,
lembrando antiga lenda e antigos salteadores.
282
Seria meia noite... Estremeci d'horror!
Um som cavo e longínquo, horrisono fragor
que vinha do occidente, ecoou pelo horisonte !...
Seria o abrir da serra?... o desabar d'um monte?...
Cairam sobre a choça os vendavaes a flux !...
A luz ondeou tremente... e em chispas foi-se a luz L
Ao triste uivar dos cães, ouvimos assustados
das feras respondendo os uivos prolongados.
Nas fendas da parede o vento a assobiar
gelava-nos o rosto e incendiava o lar.
O rio, junto a nós, como o leão ferido,
ouvi-o erguer-se torvo; e o seu feroz mugido
da morte era o pregão. Tremia inteira a Estrella !
Sopeava-a sob o açoite a horrisona procella.
— «Os Cântaros bramir ouvi, — disse um ancião;-
sou velho e sou serrano; é mais que o furacão I...
Silencio !... eis outra voz !... Roncam as Alagoas !
ao hymno dos leões responde o das leoas ?!
dizei adeus ao sol que o não vereis aqui.» —
Sumiu-se sob a palha e adormeceu.
Saí.
283
Ó moradores dos plainos !
se nunca durante o inverno
vos deu tentações o inferno
de vir visitar a serra,
se nunca nunca subistes
a estes pincaros de gelo,
onde um nevoeiro eterno
vos esconde os ceos e a terra,
não comprehendeis quanto é bello
este gemer d' um gigante
que soffre inerte o incessante
esbravejar da procella 1
Ó moradores dos plainos,
que não conheceis a Estrella !
Os vossos tufões, são brisas;
orvalho, os vossos chuveiros;
jardins, vossas veigas lisas;
alfombras, vossos oiteiros.
Essas névoas transparentes
que ao romper d'uma alvorada
correm dos rios á flor,
são como o veo da esposada,
que envolve a face encarnada
mas deixa ver-lhe o pudor !
284
Esses mil listões estreitos,
lisas nuvens alastradas,
ao sol nascente — doiradas,
ao sol posto — purpurinas,
são como as róseas cortinas
dos vossos mórbidos leitos.
Aqui, sim I o inverno é inverno,
e este é o paiz da procella !
aqui vive o gelo eterno !
aqui sozerana a Estrella
espera o feudo que o oceano
em mil aéreas galeras
lhe deve e manda cada anno
desde o principio das eras !
E cada nuvem pejada,
galeão sombrio e tardo,
cá vem depor o seu fardo,
e descançar da jornada.
Não trazem oiro d'Ophir,
nem pérolas de Ceilão,
nem diamantes de Java;
fora caso para rir
ver a serrana selvagem
de catadura tão brava
a ornar-se com taes enfeites,
r
285
como a vaidosa donzella
que namora a própria imagem.
Grilhão é signal d'escrava;
se é d'oiro, é sempre grilhão !
differe... em ser mais pesado !
Outros mimos quer a Estrella !
Chuvas torrenciaes que alagam
o monte, os casaes, e o prado;
granizo que estala, e mata
os pegureiros e o gado;
depois, a neve que os ventos
estendem por cerro adiante;
que ora simelha a mortalha
do cadáver d'um gigante,
ora a alvíssima toalha,
feita dos linhos mais finos,
a cobrir altar immenso,
onde ensaiam psalmos e hymnos
os génios da solidão,
tendo as névoas por incenso,
por celebrante o tufão,
por acólitos e orchestra
os vendavaes e o trovão.
Quando saí da choça olhei para o occidente
e vi crescer, crescer, como o subir d'um monte,
o vulto d'um gigante, enorme, surprehendente,
tendo na serra os pés, tocando os ceos co'a fronte.
286
Mal que movera as mãos, rasgou-se a névoa escura:
a lua que descia, alumiava-o inteiro !
e eu vi-lhe o vulto informe; a horrenda catadura:
os trajes d' um pastor, o rosto d'um guerreiro.
Tinha na mão calosa um roble por cajado;
capote de capuz, já roto e já sem pello:
velho, negro surrão pendente sobre o lado;
de neve, neve em floco, as barbas e o cabello.
Vestiam-n-o uns safoes dos pés 'té á cintura.
A sórdida camisa aberta sobre o peito
deixava aperceber selvática espessura
d'asperrimo cabello.
E o gesto contrafeito,
e os olhos cuja luz as sobrancelhas* somem,
e a boca fumegante a arremedar cratera,
tudo m'o fez julgar— fera com formas d'homem,
ou homem que o Senhor quiz transformado em fera.
Espreguiçou-se o monstro erguendo os longos braços
que abrangem desde a Hespanha até o grande Atlante,
limpou co'a manga solta os fundos olhos baços,
olhou, viu-me, e sorriu-se ! O riso d' um gigante !...
287
— «Que vejo? eu velo, ou sonho?
— Assim dizia
o filho, neto, ou irmão do Adamastor. —
Homem da terra baixa, que do dia
nunca, nunca avistou primeiro albor,
por medo á brisa matutina e fria,
a visitar os ermos do Pastor !
e quando o inverno alaga, açoita e gela !...
Que desejo, beirão, te guia á Estrella?» —
— «Conhecer-te de perto, Hermínio duro;
quiz ouvir-te fallar dos teus beirões,
a quem deste arraial amplo e seguro;
saber do teu passado as tradições:
perguntar-te os arcanos do futuro;
ver a Hespanha d'este alto, e os seus Leões
que afiam para nós a garra adunca !... — »
— «Silencio ! — diz o Hermínio — oh ! nunca ! nunca !...
Silencio ! que levantas as pedras da montanha !
Acaso a lusa terra cairia em tal miséria ?!...
Dormia ha pouco, e em sonhos ouvi dizer — Ibéria! —
ergui-me de convulso !... mas tinha-o dito a Hespanha t
288
Se eu acordasse os mortos !... se Viriato ouvisse !...
Se a Braz Garcia ao menos... mas não ! dormide, filhos t
a Serra inda tem pátria ! na pátria inda tem brilhos !
a voz não foi dos nossos; a Hespanha foi que o disse.
Queres do meu passado saber a historia ? é bella:
a Serra é ninho d'aguias e a águia é independente;
quando algemava os povos a Roma armipotente
livre era em ninho d'aguias Lysia, na altiva Estrella,
Quando por tredos fados ao nuto dum tyranno
immigas hostes vinham talar a nossa terra,
nunca a estrangeiro jugo curvou seu collo a Serra !
fallem romanas signas ! o árabe ! o franco I o hespano f
Se Portugal tem hydras, colha-as ás mãos e esmague-as!
Tremes pelo futuro ? não tremas 1 crê e espera !
aqui, valor não morre; nem vem traidora fera
á crista dos rochedos onde têm ninho as águias.» —
289
Dissipa-se a vizão ;
quebram de novo os uivos a calada ;
redobra o furacão ;
mais se condensa a névoa regelada,
e o meu teimoso olhar já nada vê
na plúmbea cerração.
Quando o dia raiou, quando acordei,
— perguntava: Meu Deus I vi, ou sonhei?.,
Mas eu tinha mais fé,
e sentia mais forte o coração.
III
LAGRIMAS
20
lais le bleu du trepas cernait sa lèvre rose;
Le sourire y mourrait a peine commencé;
Son souffle raccourci devenait plus pressé,
Comme les battements d'une aile qui se pose.
Lamartine.
5 «'OUTUBRO DE 1865
O' minha mãe sem ventura !...
minha mãe !... ó mãe querida !
abre a tua sepultura !
Aqui tens a minha vida !
vida inútil a seu dono;
acceita-a, mãe ! volta á lida !
Antes eu durma o teu somno !
Sem ti, que ha de ser, agora !
mestas fadigas do outomno ?
E em casa o que vai, senhora !
meupae, olha... escuta... espera!
meu irmão, soluça e chora I...
O' minha mãe ! quem pudera
fazer que voltasse a vida
como volta a primavera !
Minha mãe !... ó mãe querida !...
Desatae-vos ! correi, ó minhas lagrimas í
Flores ! velae-lhe o derradeiro somno !
Passae de leve sobre a campa gélida,
aragens frias do ceifeiro outomno !
I
Hei de morrer no outomno ! a quadra triste
do desarmar do templo, ha?de encontrar-me
scismando esmorecido entre umas folhas,
e amortalhar-me tfellas.
Quando as festas
que a primavera e o estio a Deus offertam
houverem terminado; quando a orchestra
das aves da soidao calar seus hymnos;
296
quando o incenso, das flores no thuribulo
for de todo apagado; quando a névoa,
alva como os sudários, ao sol posto
se correr entre as serras e as estrellas;
quando as folhas, do hálito da morte
cairem bafejadas, como caem
festões e arcos de loiro, após a festa,
das columnas da igreja sobre as campas;
quando o ermo for ermo, e triste, e morto,
hei de eu morrer também ! sinto-o cá dentro.
O meu querido outomno, o velho pródigo
que dá quanto possue por ficar triste,
e pobre, e só, chorando silencioso
na solidão luctuosa, ha de encontrar-me
um dia vagueando sem conforto
entre os despojos do festim opíparo,
como ave espavorida que nâo ésma
a dirigir um voo, e só circumda,
com piar lastimoso, um ponto escuro
onde ha pouco existira um ramo e um ninho;
ou como o que procura entre ruinas
conhecer umas pedras da poisada
que desabou poupando-o e o tornou órfão;
e eu hei de lhe dizer coisas tão tristes,
que ha de ter dó de mim, e agasalhar-me
nas caridosas pregas d'um sudário 1
297
II
Ai, que tristeza a minha ! ai, que soidão profunda !
Pranto, estou só, és livre ! irrompe, suavisa, inunda
o rosto contraído, o seio... este volcão
que se accendeu cá dentro, e abraza o coração !
Um dia minha mãe dis se-me:
— «E's triste, filho!
não falias, não sorris, teus olhos não têm brilho !
escutas sem ouvir, olhas, não vês ninguém,
e não vens acolher-te ao seio de tua mãe !...
a cada teu lamento, o pobre aqui responde !
procura-o, que te espera ! e vê como te esconde,
e te consola, e anima !...» —
Ai ! vede o que é ter mãe !
Quem diz o que ella diz? Ninguém! ninguém!.,, ninguém!
Àquelle amor celeste... o seio... arí nada existe !...
A minha mãe morreu !... Nem tenho onde ser triste !...
298
III
Sempre me estão do ouvido
esses funéreos dobres,
e o canto dolorido,
e o soluçar dos pobres !
dos pobres, seus encantos,
que á funeral jazida
vinham trazer-lhe os prantos
da extrema despedida !
dizer-lhe: — O' mãe, morreste !
deixaste os filhos teus !...
vimos lembrar a Deus
o bem que nos fizeste !» —
IV
Fui achar meu pae tão triste !
co'as faces tão maceradas I...
carpia as barbas nevadas,
299
co'os olhos postos no ceo !
beijei-lhe a mão que tremia,
fria, fria como gelo !
se ha martyrio nobre e bello,
bello, sublime era o seu !
O martyr de tantas penas,
sereno entre tantos luctos,
disse-me d'olhos enxutos:
— «Sòu mais velho, e fiquei eu !...»
Pobre de meu irmão ! coitado d'elle !
sacerdote de Deus, na flor da idade
votado ás solidões ! victima imbelle
da mais cruel saudade !
tao mimoso que foi do seu carinho...
hoje tao só no solitário ninho !
Já nunca mais a sua companheira,
seu amor, seu orgulho, e seu desvelo,
ha de esperal-o a noite longa, inteira,
a rezar e a escutar se lhe ouve os passos
de volta ao presbyterio I
não mais ha de correr a abrir-lhe a porta !
não mais hade cingil-o entre os seus braços !...
300
Gomo ha de elle passar do cemitério?...
Como ha de elle viver na casa morta ?...
VI
Quando ella agonisava,
suspensa a vida entre o mysterio e o mundo,
procura va-se um padre, um velho... um justo
que lhe rezasse as preces da agonia.
O filho sacerdote, que chorava,
ergueu-se, e disse então, solemne e augusto:
— «Se minha mãe me visse moribundo,
não me deixava o leito;
quero pois que a santinha deixe o mundo,
encostada ao meu peitol
quero rezar-lhe a prece derradeira f
eu sei que isto a consola.» —
E foi-lhe ajoelhar á cabeceira.
Resvalava-lhe o pranto pela estola,
pelas dobras do leito mortuário,
luzindo a espaços com sinistro brilho;
a voz, estrangulava-lh'a a garganta;
tremia-lhe entre as mãos o breviário;
mas a supplica santa
mandou-a a Deus o soluçar d' um filho.
301
VII
Eu lia-lhe os meus versos...
versos?!... uns ais sem eco ! versos, não !
uns fragmentos avulsos e dispersos
do meu dilacerado coração !
eu lia-lhe uns lamentos, que a sua alma
sabia que eram meus !
era pedir conforto, abrigo, e calma,
sem lhe dizer: — «Sou martyr I» — que só Deus,
ou coração de mãe, são bons juizes
dos estragos d'essa arvore maldita
que em nosso coração lança raizes,
e em lagrimas floreja, e fructiflca em cantos,
mais tristes do que a dor que se baptiza em prantos,
e chama-se desdita.
Ella ouvia receiosa,
e o seu seio dolorido
applaudia co'um gemido
cada estrofe lagrimosa;
302
que ou nos clarões da memoria,
ou nos affectos do peito
achava o occulto conceito,
e adivinhava-lhe a historia.
E exclamava:— «Que doidice !
choro e rio I que simpleza !...»
Ai ! no sorrir que tristeza !
ai ! no chorar que meiguice !
E após tornava: — «Já viste
chorar assim por chimeras?...
Tão alegre que tu eras...
filho, quem te fez tão triste?...»
VIII
Ao descair da tarde
entrava minha mãe no cemitério,
e regava as florinhas dos canteiros
que circumdam as campas. Certamente
303
aguella vida se sentia extincta,
e ás pavorosas portas do mysterio
fabricava o casulo onde esconder-se,
para d'ali voar, larva celeste,
a pedir melhor vida a melhor mundo !...
Florinhas tristes, companheiras d'ella !
se em torno a vós adejam borboletas,
não lhes fecheis o cálix I debruçae-vos 1
dae-lhes o seio, os néctares, o incenso !
não perdeis nada ! á noite cada estrella
chorará copioso e doce orvalho.
Quem sabe se ellas vão buscar o Immenso ?
IX
Um dia
a minha boa mãe (como eu desejo
repetir este nome ! a dor mais forte,
cevando-se, minora) offereceu-me o ensejo
de ser seu companheiro
na pia jardinagem;
e fomos.de romagem
ao seu jardim, que era o jardim da morte !
304
Era de ver o desvelo
com que ella, de flor em flor,
voejava, loquaz e acceza,
como zumbidora abelha
que anda a lidar sem descanso
entre os rosaes da deveza;
e dava cuidado e amor:
aqui, ao goivo singelo;
além, á dália orgulhosa;
logo, á viril romaneira;
ao cedro, á acácia, á mimosa,
á murta, ao lyrio, á roseira !...
Tinha ali prazer completo I
em cada cruz, uma gloria t
em cada campa, um affecto !
em cada affecto, uma historia !...
E ella contava os tormentos
de tanta sorte inclemente,
ajuntando a cada nome,
as saudades, os lamentos,
a miséria, a paciência,
dos que essa terra consome !
Era o epitaphio vivente
de cada morta existência !
305
E eu disse-lhe: — «Ó mãe, que anceio
te prende a quanto é funéreo ?
Não mais finados ! teu seio
é jardim, não cemitério !
Como nasce, e viça, e medra
dentro em ti cada amargura!...» —
— «Filho, qae lettra, ou que pedra,
tem do pobre a sepultura?» —
— «Porque estas florinhas hoje
affagas com tanto geito ?
— «Sinto que o dia me foge:
ando a compor o meu leito.
Ando a enfeital-o de flores;
quero-o garrido e formoso !
a morte é nuncia demores;
sou noiva do eterno Esposo f
Não me foi contraria a sorte !
Para mim, já nesta idade,
todo o grande horror da morte
cifra-se numa saudade !» —
306
X
Ao pé da Residência ha três loireiros
que se abraçam co'a rama; ao lusco-fusco,
avesinhas aos centos vem dormir-lhes
entre as fechadas folhas; velhos ninhos
lá ficam esperando as primaveras,
forros de musgo novo, e as novas proles.
Um dia mão cruel quiz derribal-os !
minha mãe prohibiu:
— «São meus I — disse ella
Tudo aqui é da igreja, — a mãe dos pobres, —
só !... deixae-me os loireiros !» —
— «Mas, senhora,
são arvores sem fruto ! as ramas largas
servem só de acoitar aves damninhas,
e assombrar o passal ! estas raizes
vão-nos comer as hortas e os pomares !...» —
307
Minha mãe conhecia as avesinhas !...
estima vam-na tanto as mães-e os filhos !...
tantas vezes lhes dera pão no inverno,
ali, no parapeito da janella !...
— «Deixae-m'os— exclamou— também são pobres
os que ifelles se abrigam!... Meus amores,
quando á noite chegassem, que tristeza,
vendo por terra o seu palácio aéreo !...
onde iriam as mães prender seus ninhos?...
Que diriam meus filhos?...» —
Avesinhas
que olhais cada manhã para a janella )
olhais debalde !... Ide cantar bem longe !...
XI
Altares d'esta igreja, eis-vos sem flores !
sois tristes ! Já são terra as mãos cuidosas
que vos vinham trazer o aceio e as rosas !...
st
308
Também vós trajais luto !... é justo ! é bem f
ella era aqui a pomba do sanctuario,
era alegria, paz, conforto, e abrigo !...
Eu choro !... sede vós tristes commigo !...
A serva do Senhor... foi minha mãe !...
Jamais na igreja entrou alma tão cândida,
maior fervor no orar, amor mais fundo !
passou no mundo sem saber que o mundo
tinha traições, parceis, crimes lethaes !
sabia só que havia pena e lagrimas !
haviam-lh'o ensinado as próprias dores !...
Altares do Senhor ! heis de ter flores !
mas eu... nunca as terei !... Que espero eu mais?
XII
Minha mae ! dês que morreste,
nao sei que intensa negrura
de penas e de tormentos,
me envolve, opprime, e espedaça !
talvez por isso, alma pura,
309
rosa do jardim celeste,
não possas ver-me dos ceos f
mas se ouves os meus lamentos,
has de saber que são meus !
Pede, oh! pede, mãe, a Deus
que mande á minha soidão
um raio da sua graça
rasgar-me a nuvem tenaz !
Pois todo o martyrio passa,
todo o crime tem perdão,
todo o infortúnio acha um termo,
só para mim não ha paz ?!
hei de entrar no mundo, e um ermo
achar sempre em torno a mim ?!...
apalpar o coração,
mirar-me co'os olhos d'alma
no espelho da consciência,
e ver... um martyr sem palma ?
e ter horror da existência ?!
Minha mãe ! se eu enlouqueço?!
se a pobre razão se esvai ?! ...
Oh ! não ! tu velas, e escutas
as minhas penas ! Meu pae
morria se eu lhe morresse f
310
Vê !.,. tenho as faces enxutas !
não tenhas pena; sou forte !
Tu lá tens o amor e a prece...
Fallei de loucura e morte ?!
não ! todo o martyrio passa !
tu pedes a Deus e desce
um raio da sua graça!...
XIII
Bem sei que ella vive além,
por trás d'aquellas estrellas !
quando eu choro, riem ellas,
que sabem de minha mãe !
Choro... não é de saudade !
choro com pena de mim !
é porque me vejo assim...
no meio d'esta orfandade !
-T-T-y -»-*-*— ~
311
Mas.,, ella chora também !
e as lagrimas são aquellast...
Que sementeira de estrellas
choradas por minha mãe f...
XIV
Como os olhinhos da abelha
attrai o viço das flores,
levam-me a vida as saudades
atrás d'aquelles amores !
Quero chorar... e não posso;
quero fallar... e emmudeço;
quero sorrir... e suspiro;
quero viver... esmoreço !
Se eu fiz d'este amor um culto !
Se eu sou como ave estrangeira
que viu partir seus amores,
e aqui ficou prisioneira J
312
Se eu sou como alma penada
que, envolta em lençol funéreo,
anda a cumprir romarias
em torno d'ura cemitério !
A quem perdeu tanto affecto
ninguém nunca diga:— «Esquece la-
que se acaba o alento á vida
quando a saudade esmorece !
ÍNDICE
I— COROA D'ESPINHOS
Deo Gloria!.
Pena e perdão .
Consummatum est!
Stabat Mater
Jesus.
3
5
13
21
31
H-ROSAS PALLIDAS
A roeu Pae
Le Roi est mort!— Vive le Roií
Ave, Labor!— A* Cidade Invicta .
No álbum d'Arthur Napoleão.
A Festa e a Caridade .
No anniversario de Júlio de Castilho
Os meus trinta annos .
A madame Lotti Delia Santa.
Cypreste e Rosas
Num álbum ....
Dizem
No álbum do meu amigo Rocha Paris
Arbusto maninho. ••....,
A' sentida morte do meu especial amigo António d'Albu
querque do Amaral Cardoso .
Trinta e dois annos .
Miragem
Um Mocho—(Passatempo d'um seráfo d'inverno)
No álbum do meu amigo A. de Gouveia Osório
Adeus
41
43
49
53
57
69
71
77
81
85
87
91
93
97
101
105
111
119
121
314
No álbum da exm. a snr." D. Maria Anna Paes Barreto, de
Pernambuco
A minha estrella . .
Minha barca! . . . ... . . .
Versos que os filhos de Camillo Castello Branco offereceram
com uma coroa de loiros a António Feliciano de Casti-
lho na accasiâo em que elle assistia á inauguração d'um
monumento que lhe era consagrado na quinta de S. Mi-
guel de Seide .......
125
127
131
Já?!
Loucuras . . . . .
Os sonhos do escravo branco— (Fragmento)
Esterilidade
As novas conquistas ....
Foge,
Faço idéa
A Judia
Tântalo
Um canto da puerícia
Bem-vinda— (Por occasião do consorcio de Suas Magestades
Fidelíssimas o Senhor D. Luiz e a Senhora D. Maria de
Saboya)
A Hortênsia
Anniversario
Entre flores
Num álbum
Zara— Conto de moiras encantadas.
Vae, mas volta!
A folha verde — (Reminiscências do Carnaval)
A Borboleta
No álbum de Arthur Napoleão — (Na véspera da sua partida
para o Brazil) ....
Os Cegos
O Penedo da Meditação
JL X fole I • • « ......
Fiel-o-mollosso . . .
O Hermínio
135
137
141
149
153
155
167
171
173
183
185
191
195
201
205
211
213
223
225
233
239
241
251
257
263
279
IH-LAGRIMAS
5 d'outubro de 186S
-tfúl
293
— •*•
\ »
s •»
...»